quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Encontro frugal

Uma escada vertical, levemente inclinada, garante movimento uniforme para cima. O último degrau é comido, quase junto com meu pé. Pulo e caio no chão, impedindo a passagem daqueles que estão atrás de mim. Acredito que se fosse uma criança não escutaria "Bacaca, sai da frente!". A compaixão moveria as mulheres com olhos marejados, fazendo com que me ajudassem a levantar. "Onde tá sua mãe?". Eu responderia "Não quer ser a minha?". Pena que não sou mais criança. E mesmo assim, incesto não é palavra de ordem por aqui.
Levanto. Passo a mão na minha camisa, limpando-a de uma sujeira que não vejo. Continuo o meu trajeto, ao som de risadas secas. Aida me espera no praça de alimentação, de olhos baixos, como se me procurasse por debaixo das mesas. Se fosse criança, com certeza ela não seria minha mãe. De cabelos levemente escuros, determinada e excessivamente independente, sua personalidade não poderia ser mais constrante à de minha mãe biológica. De qualquer modo, a beleza é similar. E por mais edipiano que seja, o amor torna-se dividual quando penso nas duas. Dividual pois amor dividido não é mais a mesma coisa, a natureza muda. O ar se torna água. E me afogo. Bem, não hoje. Dicionários de livrarias, lendo termos a esmo.
Encosto as mãos no ombro de Aida e ela finalmente olha pra cima, procurando meus olhos.
Sua procura é elíptica. O duplo eixo, pupilas. Ela sorri e volta a olhar para a mesa. Choraria como criança machucada. Se ainda fosse uma. Sendo supostamente adulto, olho para os lados. Comprovo que ninguém viu a cena e sento na cadeira mais próxima.
- O que foi hoje, Aida? Quer terminar, está grávida ou quer casar?
- Ai, não é nada disso querido. Mas a pergunta foi ótima!
É, ela sempre foi assim, descolada.

Caso comum de uma vítima mergulhada em ansiedade destrutiva: o narrador nasceu, cresceu e viveu a juventude muito bem. Boa família, nenhum amigo, três namoradas. Conheceu o sexo aos 16, nas velhas casas do prazer pago. Beijou uma conhecida aos 14. Oportunidade aproveitada, de fato.

Sentado de cócoras, debaixo do chuveiro. Sem roupa, evidente. A água pinga sobre meu corpo de frigideira. Lanço-me sobre outro cenário . A respiração rápida, os olhos mirando o chão, presente no futuro, cogitando os possíveis desfechos na latente quebra da rotina. Insisto em ficar debaixo da água até a fumaça esmorecer. Aida bate na porta, me chama. Eu gemo uma resposta. Quase vomito, olho pra cima. Levanto-me, desligo o chuveiro e olho fixadamente para o ralo com um olho fechado. Haja foco. Espero que o tempo me seque. Minutos depois, saio do banheiro. Vou para o quarto enrolado numa toalha. Estou fechado a porta do banheiro.
- Porque a demora no banho?
Olho em suas pupilas delgadas.
- É o calor.
Ela se volta para o corredor e resmunga algo para as paredes. Fecho a porta do quarto e a tranco. Me jogo na cama, com a toalha. Fecho os olhos e respiro profundamente. Escuto passos pesados, Aida correu.
No reino das vontades, beijar Aida aquele dia no shopping seria o clímax. Tremi com a possibilidade, pois o beijo aconteceria três dias atrás, antes da fatídica conversa na praça de alimentação. Não consigo mais encarar Aida, mas finjo suportar sua presença quando meus olhos encontravam-se com o dela. Apesar de meu corpo contrariar meu rosto, suportava pelo bem que ela ainda fazia, não mais frugal. Desejo que Aida só exista como idéia a partir de hoje.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Vice, versa, vice.

As duas horas da madrugada de uma sexta-feira, Isabella escuta o som de um trem. Deitada em sua cama, de olhos fechados, imagina um acidente. O som crescente, o descarrilar, a provável explosão e o inevitável estrago. A menina se levanta, vai para a cozinha. Toma um copo d´agua e senta na mesa, encarando o relógio na parede que faz um tic-tac contido. Lentamente, Isabella se aproxima do contador, pega-o e arremesa na parede mais longe. Ela então desperta.

As duas horas da madrugada de uma sexta-feira, Jarbas observa, pela sacada, sua vizinha tomar banho por uma fresta qualquer. Imagina que tenha chegado de uma balada genérica e foi tirar o cheiro de cigarro ou de vômito seu ou de uma amiga qualquer. Provavelmente sem sono, a vizinha se recusara a dormir fedida. Jarbas, como qualquer bom moço, respeita a privacidade da vizinha observando-a com apenas um dos olhos abertos. O outro concentra-se em imaginá-la ao seu lado, dando um oi tímido e em seguida um beijo demorado e molhado. De súbito, um som surdo provindo de outro apartamento faz Jarbas piscar compulsivamente. Isabella então dorme profundamente, revirando os olhos, protegidos pelas pálpebras.

Carta

A saia passada, cortando o ar mais rarefeito que eu já vi. Seus passos marcados no chão, decididos, pareciam oferecer resistência ao diálogo. A sequer uma sílaba.
Mas ela estava muito longe pra esboçar alguma reação além daquela que estava representando. Caminhava para seu destino, algum lugar aconchegante, como uma parede macia receptiva. Aos poucos presentes no caminho demarcado por argamassa, restavam-lhe olhar para o céu, as nuvens ventadas, ou o chão, as pernas calejadas.
Eu sussurrei no escuro:
- É assim mesmo. É isso e nada mais...passado o tempo de reconhecimento da área, o mapeamento das reações químicas que teu rosto me proporciona. Longe de mim querer um olhar assim...
Um estranhamento na espinha, respiração dificultada e as mãos balançando para não demonstrar o nervosismo:
- É realmente uma palhaçada. sabes da tua condição e mesmo assim não se entrega. É uma fraca desgraçada. Queres um dinheirinho? É casual, considere como se eu tivesse te pagando uma cerveja. Vai, vai...
A maioria diria que a coisa não é como tal apresentada. Os balbucios impedem a ação esperada do corpo. Dois atos, sem consequencias. Uma mão do lado, a outra em baixo. A parede macia, meu deus! Seria uma noite.
Uma coisa realmente significativa, que representava uma vivência completa. Por uma noite, uma única respiração.
- Aqui se faz, aqui se mata. Queres mais algo? Nada vai vazar daqui.
Prontamente ela responde depois de 10 minutos de greve de silêncio:
- Não mete essa!

sábado, 18 de setembro de 2010

Plano infalível

Eu falsificarei Deus e irei comandar o que estiver ao meu alcance. Por razões que só a Natureza explica, criarei 10 personagens. Dez seres atuantes. Cada qual a seu modo, particular na sua forma e estética. Principalmente na forma. Embalagens, plásticos de faces.
A força nasce e o plástico tentará possuir o esôfago. Isso nunca irá acontecer, mas a força reside na sensação. Um número suficente de sufocantes aparentes. Nada mal pra se começar uma revolução. Mas não é disso que se trata a criação, dos putos, dos flagelados, dos martírios, das felicidades, ah!, do líquido. Monta-se o cenário, cor vinho chapada. Curvas marrons, pôr do sol duplo. Como um bom Deus, sóis das cores básicas, cor de burro-quando-foge e queijo-fondue. (Eu não iria colocar um sol com cara de bebê-Teletubbies. Se bem que, ok, esquece...)
Pois bem, coloca-se os dez em ação, todos absortos em seus monólogos, despreocupados com os outros presentes. A pláteia faz um único monólogo virtual, pensante, intelectual. Abstrái-se o susto inical e tenta-se explicar o decágolo(faz-se de conta que isto significa o conjunto de dez monólogos, mesmo lembrando algo que tenha a ver com gola...). O torto da ação pontua a concentração do público pelo que é dito e não pela intensidade do que se fala. É um paradoxo comum e explorado por alguns(desculpa por não saber o número é fatal). Pra facilitar, as dez personalidades do mundo são nomeadas. As faces plastificadas são de cores diferentes. Os elogios são os mesmos, os defeitos originais. A matéria surge do nada, o plástico se recicla, a originalida se mastiga, os orgãos se consomem. Sem ensaio, é necessário o improviso. Num dado momento, as falas irão de cruzar. Pularão uma em cima da outra, construindo um amontado de expressões válidas para a deconstrução do mundo quase concebido. Gostaria que a platéia sumisse ddepois disso? Tudo bem, imagine assim. Não é a única escolha, mas para facilidade de narração seja a mais adequada e provavelmente a mais usada.
Esqueci-me do céu por uns segundos. A cor dele? Acredito que seria cinza esbranquiçado, constraste ideal para a terra banhada pelas cores perfeitas. Por razões que só a História explica, alguns personagens começam a destruir o cenário ao seu alcance, outros choram, e alguns poucos atuam como criadores. O restante prima por sua imaginação...
Eu sou falseador, esqueceu? Com defeitos originais. Nada mal para quem quer começar uma revolução.

Preparação

Dos mais felizes, provavelmente serei o mais atordoado. O mais fora de si. Revirando os olhos até que girem em todos os ângulos, esperando que as córneas se desgrudem. É a verdadeira alucinação dos desajeitados. Em tons graves de gritos agudos, uma harmonia é construída em porcelana fina e ostensiva.
Da cama afundada, o suor inunda os olhos, fazendo-se lágrimas salgadas e quentes. Abri o sorriso mais desajeitado dos felizes, cantando no silêncio do escuro a música mais celebração do momento. Socando o ar e fazendo gestos. Os tímpanos pulando com o som da caixa da bateria. Os vocais melódicos, transbordando um sentimentalismo sutil. O mundo depois da janela explodiu. Atestando a singularidade da composição, vibro com mais uma descoberta musical. Um mundo virtual ergue-se de novo, preparado pra engolir os aptos a mexer os músculos do rosto, localizados abaixo do nariz. Os olhos fechados, as córneas calmas, o silêncio flutuante. Mais simples que o ar. Mais simples que pular bueiros. Bem mais difícil que aprender a nadar em piscina de bolinhas. O ato de flutuar traz consigo uma necessidade de abstração completa. Ou seja, é necessário ver o escuro com os olhos fechados. O mais alto grau de abstração dos felizes. Desloco e relaxo a pressão que as costelas fazem na minha coluna levemente torta. Enfim a respiração toma um ritmo automático e os olhos entram em greve. O cérebro não pára, porém começa a caminhar para o mais inconsciente e obscuro dos lados.
O silêncio, nesse caso, é a prova de explosões químicas.

Seja bem vindo ao nosso restaurante, aqui está o cardápio

Provavelmente desisto de seguir a tradição simplesmente porque não consigo. Sim, ao calor do momento não posso afirmar que seja capaz de fazer qualquer coisa agora por ela. E a culpa falsa se esconde nesse copo de vinho.
Um suspiro ecoa nas imediações de meus tímpanos e exige que eu o faça. Indeciso, com os olhos congelados voltados para baixo, não consigo me movimentar e a dor começa a latejar. O universo agora serve o prato principal. Não poderia necessariamente ser diferente, assim como essa frase não deveria ser interpretada. Pois já existem rios de lamentações suficientes para servir os olhos do mundo. E é nesse momento que dou uma puxada no canto direito da boca. É o riso contido, o prato que sempre é jogado no lixo no final de todas as noites.
Já esse restaurante de nome família insiste em ajudar a minha filha de modos que julgo errado. E eu acredito que eu seja de outra natureza. Necessariamente não superior, simplesmente diferente.
Talvez ela seja a única que tenha me puxado, sendo eu um ser consciente da minha (in)capacidade de perceber as coisas como elas são. Não poderia ser mais desajustado. E são poucos os que possuem a incrível capacidade, e talvez benção, de conseguir me machucar. A sobremesa sempre será o tapa da sua realidade, leitor, a que você vive. Imagine que eu seja um tipo especial e que você acredita em minhas palavras.
Dizem que minha filha precisa de uma injeção e cabe a eu dar-lhe esse golpe racional. A hesitação explica minha paralisia, a identificação é evidente. Doses cavalares de placebo e alguns picos de felicidade industrial. Seria um procedimento simples, como preparar uma salada. Lavar, temperar, comer. Dar um banho, entupi-la de remédios e fazê-la acreditar que está vivendo uma vida. Essa seria a entrada.
O início na vida do restaurante.