quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Por nada

O meu avô decidiu se entregar de uma vez. Pediu que todos os familiares se reunissem. Todos que lembrava como sendo familiares. Fui o mensageiro. Contei para todos sobre a reunião no sótão naquele domingo idiota. É, ninguém foi. Apenas eu, mais por curiosidade do que por compaixão pelo velho de cabelos vermelhos. Sabia que encontraria o corpo do Senhor Sem Memória e teria que dar um fim nele, mas a curiosidade de saber como seria o rosto de um morto me excitava ao ponto de ignorar o trabalho sujo que teria que fazer. O choque foi inevitável, é claro.
Pela estupidez de ter amado todos os familiares como se fossem bebês despreparados para o mundo. Pelo incidente que causara no último Natal, quando quis discursar sobre a importância de demonstrarmos o que sentimos. Por ter chorado toda dia que acordava, depois dos 70 anos, ao lembrar que pensar nos outros era uma merda inventada pela Igreja. Por precisar de remédios para viver, antes dos 10 anos. Pela fé que criou sobre a suposta inocência da mãe, quando traiu o marido com a minha avó e que pensava em acabar com a vida familiar e com os sonhos de meu avô criança.
Pelos prêmios de Honra ao Mérito que recebera dos escoteiro-mirins quando era adolescente e mentiroso. Por não lembrar e sentir algo quando pensava em sua falecida mulher. Pelo amor que desperdiçou esperando seus dois gatos voltarem da rua. Pela herança de sapatos que deixou para o tio mal da família, por ser este o único que calça o mesmo número. Por ter tomado veneno e não ter morrido quando era bebê. E por fim, por morrer e não ver meu futuro filho crescer e se tornar o bom homem que guiará a família.
Usando meus termos, encontrei escrito isso ao lado do corpo de meu avô. O topo dos dez dedos da mão estavam cortados. E eu não sei como ele conseguiu fazê-lo. Apenas sei que o décimo primeiro golpe foi no coração. A tesoura ainda está lá. Eu deixei-o descansar no sótão. Ele merecia.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A cor tá falha

De tons envelhecidos, a arte de Glória vinha do que não se podia descrever. Abstração pura, contida num pote de dimensões surreais, na sua grande perda de tempo. Alguns diziam que ela pintava seus sentimentos. Cada cor, um nome. Intensidade identificava apenas aparência. Ela era mesmo contagiante, para muitos.
De sua barreira, sua barreira em preto e branco, ninguém a atingia. Monocromático eram seus movimentos, colorido eram seus toques. Como o toque, distorcido, de Rei Midas em suas mãos, algo nela a tornava um ser romântico. Idealizada.
Presente de corpo e alma com quem fosse falar com ela. Mas um ar "cool" a preenchia. Um menosprezo delicado, de tons vívidos. Ela me disse uma vez que era seu lado azul celeste perdido. Daqueles que você vê por alguns segundos e tem a certeza que nunca mais verá. Como uma cena que jamais se repetirá. Aquele quarto de segundo em que é repassado nos sonhos dos maiores pensadores.
Tenho certeza que a mais profunda admiração partia de mim, mas nunca foi além disso, e era pra não ter sido. Numa dessas conversas de meio de rua, no começo da semana em que ela estava perturbada com contas, me perguntou algo que eu, na reação mais besta - quando se fala "é, isso mesmo" para alguma pergunta que não se entende, não se ouve ou que se quer escutar de novo por prazer - fiquei sem reação logo depois de despedirmos.
Meu rosto preto e branco brilhou depois que nós caminhávamos em direções opostas.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Aula, boçal

- Pensemos numa história que pareça que se construa sozinha, não no sentido acadêmico da coisa em que não exista autor ou algo do tipo. A idéia é tentar construir uma história de uma relação que necessariamente não seja de pessoas, mas que sim, sejam apenas duas. Com frases de efeito que funcionem e não sejam jogadas ou pra encher espaço, ou pra dar uma suposta profundidade, que no fundo (olhe o trocadilho), é raso. Pra isso, primeiro precisamos de uma boa trilha sonora, evidentemente, boa para o gosto de quem escreve a história. Ninguém vai saber o que o cara ouviu quando escreveu AQUELA frase foda, então anotar a música é perda de tempo. A partir daí, a história vai se desenhar ao sabor da música, e é óbvio que isso é absurdamente ridículo, mas muita gente sabe o que eu quero dizer. Se não souber, não tem problema. O que queremos de fato é soarmos engraçados e mas ao mesmo tempo profundos. Cabe ressaltar aquela velha dialética do ator cômico que quer ser levado a sério, mas nunca consegue. E quando consegue, as pessoas querem que ele seja apenas o ator cômico. E isso está atrelada com a expectativa que as pessoas têm das outras pessoas. A palavra de ordem é exatamente essa: ordem. Expectativa alcançada é ordem respeitada. Obviedade seja respeitada, não é pra isso que estamos aqui.

Barulho de lápis batendo em cadernos.

- Vejamos, você, fale!

- Eu, porque tem que ser eu sempre, professor?

- A senhorita sabe a resposta.

- Ok, ok. Tá, é pra falar a trilha sonora que eu escolheria?

- Não, o que foi que eu disse?

- Ai, ai. Calma então.

- Ande logo. Feche os olhos e começe a me desenhar uma história em 10 segundos.

- Será que eu consigo? Ela se perguntou em baixo tom.

Dez segundos se passaram. Tempo suficiente para o professor coçar arduamente sua barba grossa e exigir uma história.

- Como é? Vamos?

- Certo, eu vejo...

- Você vê? Drogas só são permitidas no intervalo, senhorita.

Um burburinho começa atrás da senhorita.

- Duas crianças está brincando no meio de uma aula. O professor vê e dá um sermão. Ele diz: "Muito bem, qual é o sermão que querem levar hoje, crianças? O de que seus pais estão gastando dinheiro pra vocês estudarem e não brincar? Não? Que tal então a de que..." Então o sinal do recreio bate.

O sinal para o intervalo bate e a sala olha assustada para a senhorita.

- Outro "Mais estranho que a ficção" senhorita?

E antes que pudesse responder, a sala começa a se esvaziar e ela some no mar de alunos apressados.

- Na próxima aula, eu trago um cadeado pra porta - resmungou o professor.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Hoje eu vou sair

Talvez eu procure algo realmente sem sentido, que na verdade só crio para estar atrás de algo. De tanto procurar, às vezes acabo encontrando, fruto da incerteza. E isso me atinge da pior maneira, como soco no estômago ou simplesmente dor certeira. Traçado o roteiro, após doses cavalares do encontro, bato a porta que me separa do ambiente feito de quatro paredes e do céu. Peço perdão pelo mau funcionamento de meu corpo a esmo e encontro uma cachaça na porta de casa. Segundos antes de segurar a garrafa brilhante, alguém a pega rapidamente:

- Achou que eu tinha esquecido do nosso dia?

Helena antecipou a noite que iríamos ter. Ela sabia que minha teimosia a faria gastar algumas horas pra me convencer. E eu não a queria agora, a garrafa já bastava. Teimei e acreditava na minha posição. Socaria a cara de Helena quantas vezes fossem necessárias para conseguir tomar aquela cachaça. A deriva, talvez encontrasse algo que fugiria do encontro que tive dentro de casa. Insaciável é Helena, idealizadora de futuros falsos, preocupada em fazer sempre o bem, principalmente para mim. E o que há de se fazer? Do outro lado da mesma moeda, insisto em procurar buracos.

- Hoje não dá. Quero sair por aí, talvez te encontrar!

- Querido, eu estou aqui...

- Sempre querendo me entender, hein Helena.

- Tá tudo bem?

- Sempre está, Helena, sempre está.

Se não encontro, tento cavá-los. Ela nunca entendeu, apesar de fingir querer fazê-lo.

- Até amanhã!

- Mas a gente nem começou. Vamos, me dê uma chance, a noite vai ser boa aqui...

- Com certeza vai ser...tchau!

- Querido! Volta aqui!

É inevitável que ela não entenda e por isso eu fujo. Pego a cachaça e saio correndo até o próximo quarteirão, pois a partir desse ponto Helena não tem mais poder. A procura é por algo metafísico, e é evidente minha preocupação em comê-lo cru, em estado puro, na escuridão que só a solidão pode proporcionar. E a diferença entre procura mental e procura física reside apenas no movimento que cada uma faz em seu eixo, egoísmo intelectual e apreço pelas aparências. Enquanto meu cérebro insiste em dar voltas, meus pés caminham para alguma direção que não tem fim.

Meu passo diminui com o passar dos quarteirões, as luzes seguindo um padrão de posicionamento certeiro e o peso de meus pensamentos afunda-me na calçada. Qual é o valor com que encaro os efeitos causados pela minha âncora mental?
Meus olhos gostam de correr o risco. Meus músculos não. Minha visão fotografa um casal seminu perto da entrada de uma entrada sem saída, próxima de uma boate perto de casa. Acredito que o sexo foi a única coisa que sobrou para fazerem, já que para eles trocar algumas frases, ou até poucas palavras seria inconveniente para ambos. Ele supõe que ela cansou de ouvir, e ela não agüenta mais não escutar nada dele, e por isso ela aceita o sexo como único maneira de fazê-lo falar, nem que seja por gemidos inconscientes. Tudo é negociável quando não se negocia.

Logo um bar surge, perto da boate, que naquele momento não ficava mais perto de casa. E eu culpo a garrafa. Carlos, acompanhado de mais uns amigos, me chama para uns drinques perto da porta de entrada do bar. Educadamente, com a gravata toda amarrotada e a camisa suada, exige que eu sente com seus amigos. Penso longos segundos. Faça um longo discurso para quem quiser ouvir e decido sentar e ficar. Já estava cansado demais pra continuar divagando.

E acredito que Helena ainda esteja me esperando na porta de casa. É sempre bom ter um porto seguro, onde minha âncora não sofra retaliações. Afinal, Helena só quer me entender.