domingo, 16 de outubro de 2011

Mais uma dose

A novidade recai sobre seus ombros, Mario. A segurança que a rotina lhe proporcionou desenha destinos incertos, você saiu de casa. É o que ele imagina. Anda calmo pelas ruas que conhece, irritado pelo caminho percorrido todo santo dia. Todo dia demoníaco. Pega a bolsa carregada de canetas, dois cadernos, Passatempos, papel toalha.
Os olhos tremem, mas ele não sabe o porquê. Insiste num movimento que ele mesmo não sabe exatamente qual, não quer aquele cimento a sua frente, mas não quer a alternativa de pegar o condução lotada de manhã. O suor, o mal humor, a insensibilidade forçada pelo ar que os rodeia.
Ele gosta de observar as pessoas pra não pensar sobre si mesmo. Confere seus sentimentos sem sucesso, a face é única para todos, plácida e gélida. Mario projeta seus medos sob seus pés, já que assim pode pisar em seus temores a cada passo que dá. Tarefa ingrata. Improdutiva. Os temores se renovam, em ciclos, margeiam sua existência, disfarçados. O ano passou.
Ele acredita na necessidade de resoluções. Mas sabemos que todo problema traz consigo desenvolvimentos longínquos, nós precisamos dos problemas, os problemas nos querem. Crescemos, amadurecemos, a criança egoísta hiberna, o urso adulto acorda. Presentes de Natal.

Mario encara a árvore de Natal. Nunca pensou em como seria seu Natal sem a presença dos avós, figuras aglutinadoras, a família reunida. Árvore enfeitada, cheia de adereços, cobrindo sua nudez, sua natureza verde e simplesmente existente. Assim como ele, decorado pelo comportamento insensível, estático. O tio cutuca seu ombro:
- Sua avó que decorou, lindo né?
- É...demais.
O tio sai, vai pegar mais uma cerveja.
Mario encara a árvore de Natal mais uma vez. Encara o chão, os olhos tremem. Ele corre para o bar. Duas horas depois:

- Mais uma dose de vodka, garçom.

sábado, 13 de agosto de 2011

Rotina

Ao redor da círculo que Adelmo calculava pra si, o ponto que fecha a forma hesitava.

- Não acredito no desespero que todos aparentam ao pensar na rotina. Ela não pode ser tão agressiva assim.

Você observa os olhos dela girando, piscando, tremendo. Eu sinto aquilo que você indica. Há uma exatidão nos seus desejos que eu não consigo conceber. Olho pra cima, desejo uma explicação racional, porém só o destino pode explicar. Sem pensar, acredito naquilo que é perecível: a vida. Caminho sobre seus passos deixados na praia, uma posição a seguir. Uma caminho pré-determinado a justificar minha existência, nossa existência. Nós queremos mais, sem saber exatamente o quê. Eu não quero você, mas te desejo. Você me quer, cogita em me desejar. A nossa rotina parece diferente daquela que planejamos. Com filhos andando pelo jardim cheio de rosas. O leito matutino, o cereal, a televisão, o jornal, o beijo morno. A viagem de carro. O olhar rente. A determinação frágil, o sonho perpétuo, a morte indelével. Tudo vale a pena quando não aconteceu por pena.
Eu queria cebolinha, você rosas. O sustento, a beleza. O que nos sustenta em pé agora? Nossa convivência opera de formas diversas.

- Vamos pro parque hoje. Passear, que tal? - sugere sua voz mansa, porém determinada.

Karen, eu não quero que você roube minha atenção. Afinal, o que mais pesa é o seu destino. Caminha almejando o destaque, o ser mais comunicativo do universo virtual, a formadora de opiniões, seu tumblr, seu blog sagaz, sua estupidez disfarçada de inteligência a frente de seu tempo, engraçada frente aos acontecimentos do tempo. Suas intenções revelam o vazio de suas ações. Isso não vale nada, amor. E eu não quero sua opinião. Muito menos a minha. Que tal nos anularmos?
Sua pressão, meu vômito. Observo o caminho que faço todos os dias, insensível, a rotina perdeu a graça. Quero mais, mas talvez não queira você. Muito menos seus filhos. O destino devia explodir.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Cadê?

Cansei de me quebrar por aí. Despejando pedaços de concreto que agora são massa, misturando-se com a lama do mundo. Isso não funciona como deveria. Afinal, não sei bem como reconstruir as coisas, apenas manter o aspecto necessário. Abaixo a cabeça e aceno com a mão direita, envergonhado. Cadê a simpatia? Eu não sei bem como você pode imaginar a cena e por isso injeto a ação, tida como princípio fundamental da narrativa que aqui não existe.
Atravessando a rua, cruzei com a construção mais colorida que jamais ficcionalizei. O motorista de táxi acompanhava a travessia, atrás de mim, com seu carro pouco possante. Certamente desejou acelerar um pouquinho mais pra tirar uma pequena casca que certamente se soltaria do meu corpo pedregoso mais cedo ou mais tarde. Mas somente o vento faz o serviço direito, cortando o mundo a longo prazo, uma faca estragada, útil apenas com o passar do tempo. Mais vento, mais força, mais estragos. Funciona, limando o exterior, procurando a casca de vocês por aí.
A menina dos balões, paralizada na esquina mais próxima de meus pés movediços, encarava o movimento. O vento puxando os balões pra cima, sugando aquilo que acreditava ser seu por direito, o ar mais quente que o nosso. Passei por ela olhando pro chão, pois ainda não aprendi a olhar pra frente. Como poderia? Sei que as minhas suspeitas poderiam fazer sentido: estou na privada do mundo, bosta pra todo lado.
Um ser gritou por perto, despertando meus olhos treinados pela gravidade, "olhe pra baixo".
- "Não tenho nada." - menti. O mendigo queria me cumprimentar e disse algo inaudível.
Afinal, estou com meus fones de ouvidos ligado ao meu nada que reproduz música.

terça-feira, 1 de março de 2011

Unfollow - Parte 1

Da sacada que dá pra a rua, Talita observa o caminhar de Florêncio, duas quadras a frente. Chinelos largos. Na esquina ele olha para os dois lados e atravessa a rua, mas não sem antes dar um tchau para sua observadora. Talita manda um beijo. Ele entra na padaria mais próxima. Talita tuita de seu smartphone: "Peço dois pães e pisco para a atendente. Morena, dourada. Quanto custaria?"
Do terceiro andar de seu prédio, Talita insiste em escrever tentativas de infidelidade. Ela aprecia o fato de ser a coadjuvante de uma relação alheia. Excluindo o papel de protagonista, a amante de Florêncio se satisfaz com o tempo contado que tem com ele. Uma relação que exclui desvios, futuros ou sentimentos ocultos. Há o compromisso de forjar um compromisso, uma novidade com os dias contados. Ela passeia pelo quarto, pega o lençol da cama e o cheira. Desliza suas mãos pelas coxas, respira fundo e solta o corpo em direção a cama. De olhos cerrados e com o rosto voltado para o colchão, conta dez segundos com os dedos. Imagina uma história com outro homem nesse tempo. Quanto custaria arranjá-lo? Um loiro de 30 anos, satisfeito em não estar satisfeito com o que a vida lhe ofereceu. A sorte de nascer numa família abastada, preocupada com a cor dos cabelos dos empregados e com a quantidade de cloro posto na piscina semi-olímpica da mansão. Esse loiro visitaria o Brasil três vezes por ano. Seria suficiente, como três refeições ao dia.
Ela poderia querer mais, exigindo de Flor notas maiores de cor verde. Mas por enquanto a imaginação de Talita pode percorrer apenas o cheiro que a envolve. Ela se levanta, semi-nua, e se dirige a cozinha. Pega um copo d'agua e espera o pão, arquitetando como deverá passar a manteiga. A próxima infidelidade pode esperar.
Florêncio chega no apartamento de Talita. Na porta da cozinha segura o pacote de pães com orgulho:
- O pão nosso de cada dia.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Unfollow - Introdução

"Esse sou eu" tuita Florêncio. Sem o ponto final, frase em aberto. Motivado ou não pelos recentes acontecimentos de sua vida extra-conjugal, almeja uma confissão adequada à traição. Assume-a enquanto verdade incostestável, sua realidade aumentada pela internet: 140 caracteres de definição. No melhor exercício narcísico desvairado de autodefinição desnecessária diante dos seguidores. Eles fazem o mesmo. Talita sabe das intenções do senhor Flor, a amante. Diz que acredita nas intenções de seu marido virtual, devem ser legítimas. Quem afinal ficaria com a herança do abastado? Sua fiel seguidora, talvez.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A natureza da lagarta

Caminhava pela mansão com dois pedaços de giz de cera. Um branco e outro verde. As paredes da sala de estar do primeiro andar estavam devidamente pintadas. Um céu verde pontuado por contornos esféricos brancos, nuvens. Talita tinha dez anos e tinha ciúmes do tamanho de sua mansão. Talita não poderia ser tão grande assim. E por isso pintava, ocupando os espaços com desenhos, um confronto diário entre sua imaginação e o espaço branco que a mansão representava. Poucos móveis de madeira compensada, armários, camas e mesinhas nos quartos. Já os dois grandes sofás de couro da sala de estar já exibiam suas marcas verdes, delimitando lugares. Três lugares. Sua mãe, seu pai e ela sentada no meio, o elo, imaginava. Com a constante ausência dos pais, cabia a empregada chefe coordenar a limpeza dos desenhos de Talita. A mansão era seu quadro, constantemente apagado, obra sem fim. Quadro branco conservado pelo excesso de ar frio que se movimentava pelas frestas e janelas abertas naquele verão disfarçado de outono. Seu pai era alto demais pra trocar palavras com ela, talvez ela pensasse que ele fosse um desenho em movimento. Os olhares já bastavam para educá-la. Não era opressivo, era a distância em forma de altura que representava a falta de tato entre eles, falta de concretude exposta pelas palavras. Afinal, o pai mal ficava em casa. De fato, a mãe ocupava tal função sem excessos, sem represálias. A mãe de Talita, focada em suas pinturas abstratas, sorria ao ver os desenhos de sua filha pelos cômodos da casa. Enquanto isso, a empregada chefe se irritava, apesar de esboçar um sorriso a cada vez que tinha que lidar com a tarefa de apagar as travessuras pintadas da menina.
No seu quarto, Talita observava os bichos que insistiam em entrar pela janela. Uma pequena floresta separa a mansão do mundo. Ele visitava Talita com notável regularidade. A menina segurava uma lagarta que andava sobre a folha mais próxima de sua janela. Folha da árvore que insistia em entrar em seu quarto. A cada ano, era mais difícil conter seu crescimento. O sol provavelmente morava no quarto de Talita.
Um dia desses a menina escutou uma conversa dos pais. No fim do corredor que dá para seu quarto ela escutou:
- O que foi que a menina achou agora?
- Uma lagarta.
- Outra lagarta?
- É, Talita disse que ela parecia giz. Não é uma graça?
- Verde como giz? Cadê essa lagarta?
O pai ruma em direção ao quarto de Talita. A menina pula sobre a cama e coloca a folha com a lagarta sob as cobertas. Ela volta a pintar seu caderno de colorir.
- Cadê esse bicho?
- É natureza, papai. Voou.
A janela estava fechada. Talita não mentiu. A natureza reside fora dos limites da mansão e vira giz nas mãos da menina. Ela pinta com o espectro da natureza, na crença de que isso seja o alimento de sua imaginação. Não, ela não pensaria isso.
- Vou repetir só mais uma vez: cadê o bicho?
- Eu não sei, papai. Ele sumiu.
O pai encara o chão, dá meia volta, sai do quarto.
- Ensinou a menina a mentir agora, Sônia?
- Tá falando do quê, Jorge?
- A menina ficou falando de natureza e de coisas voando. Fica dando liberdade pra ela desenhar pela casa e ela começa a imaginar coisas.
- Ela só pode fazer isso mesmo, porque você deixa ela presa aqui, tadinha.
- É? Então manda ela lá pra fora, pra natureza dela!
E eu achava que adultos não emburravam. Sônia disfarça um sorriso. Ela vai até o quarto de sua filha. Deitada na cama, a menina brinca com a lagarta.
- Filha, acho que tá na hora de você ir lá pra fora.
- Tá bom, mãe. Tô preparada?
- Tá sim, mas não deixa seu pai ver a lagarta - diz Sônia enquanto pega em uma das mãos de sua filha.
As duas descem a escada central, passam pela porta da frente e param diante da maior árvore da pequena floresta da mansão.
- Vai lá pintar ela, filha.
Agora ela podia desenhar fora de casa, na natureza com a natureza, como talvez ela pensasse. Talita tirou a lagarta de sua folha e começou a riscar a árvore.


Ps: microconto dedicado à Tiffany.
E com essa postagem encerro a seleção aleatória que fiz dos escritos do meu finado blog. A partir daqui, junto com esse ano novo ímpar, escreverei "material atual".