sábado, 24 de novembro de 2012

O ponto da velha

Ele estava sentando no ponto, esperando o ônibus verde. Sentido centro, como todos os dias, exceto segundas. Ia trabalhar, munido de sua mochila azul escura. Nos ouvidos, os fones brancos de qualidade aceitável e cor chamativa. O cabelo castanho quase podia tocar os fones. Ele tentava sem muito sucesso, apesar da ajuda do vento. A luta era imprestável.
O jovem observava o outro lado da avenida, pintando com suas bandas a banda sonora de sua visão. O trânsito seguia sem caos. Parecia feriado. Do lado direito do jovem, havia um homem próximo de seus 50 anos, trajando um terno escuro, camisa verde clara e gravata azul marinho. Estava em pé, calmo. Segurava uma pasta preta e certas esperanças. O fim de ano chegava e as contas estavam seguras, sem surpresas. Sua mulher continha os gastos e sua filha adolescente conhecia os limites. Era uma linha tênue entre sobreviver e viver. Funcionava.
Sentada ao lado esquerdo do jovem, uma mulher de aparentes 35 anos mexia os pés com frequencia notável. Morena saudável, apesar das olheiras. O vento brincava um pouco com seu longo vestido amarelo escuro. Ela segurava a mão de seu pequeno filho com demasiada força. Ele usava boné colorido e dançava timidamente. Talvez à música que o jovem escutava. A mãe poderia ter brigado com o ex-marido sobre a pensão. Queria mais. Desejava um pouco mais. Obtia quase nada.
O céu azul, quase sem nuvens, confundia a visão. Parecia quente, porém o vento cortava vontades e obliterava movimentos espalhafatosos. Como qualquer dia, dependendo do local. Mesmo assim, o pequeno filho continuava sua dança. 
À frente de todos eles, e dos outros presentes, próximo ao meio fio, uma senhora acima de seus 70 anos ensaiava uma valsa desconjuntada. Chamava todos os ônibus para dançar, mas os rejeitava segundos antes de pararem. Usava uma camisa fina de cor branca, encoberta por uma blusinha de lã de multicor indecisa, pálida. Tinha longos cabelos encaracolados e olhos verdes displicentes, que encaravam todos os ônibus ao mesmo tempo em que os ignorava. O olhar fixo permanecia na entrada do próximo possível dançarino. Balançava os braços, pedindo participação sem motio aparente. Caminhava em círculos pelo longo ponto de ônibus, num disciplinado vai-e-vem. Ia e voltava levando consigo sua pequena bolsa marrom. As costas curvadas um pouco pra frente, respondendo ao chamado da gravidade. Sua silhueta magra amenizando seus movimentos. Novamente, a sua mão balançava em negativa. E mais uma vez outro motorista dava de ombros e ia embora. Por alguns segundos, a velha encarou o jovem em uma de suas viradas. Em resposta, ele virou o rosto, fingiu que não era com ele. Ignorou, como todos ali.
A mãe se levantou e puxou a mão do filho, alheio a tudo. Sua tímida dança era seu mundo.  A dançante mão livre do menino resvalou sobre um dos fones do jovem. O ônibus amarelo chegava rápido. Mãe e filho estavam no limite do meio-fio, prontos para saltar direto para o domínio dos ônibus. A velha, mais uma vez, convidou o ônibus para valsar, desistindo logo em seguida. A mãe fez o sinal, do jeito que podia. O ônibus parou subitamente e o som do freio invadiu a banda sonora particular do jovem.
- Vixe!  - comentou o homem de terno.
Encarando o homem, o jovem fez um virtual "é..." com a cabeça. O homem pareceu satisfeito com a resposta e nada mais foi dito. E a insatisfação foi embora na forma da mãe, prendendo o filho naquele veículo maculado pelo cidadão comum e incomum. A pensão podia estar indo embora de uma vez por todas. O menino teria o futuro prejudicado e Billy Elliot poderia ficar desempregado.
A música novamente invadiu a visão do jovem, desenhada pela contínua dança desajeitada da velha. Talvez confusa, perdida. Porém agora parecia sincronizada com a música do jovem. Ele notou o ritmo dos passos dela, as batidas da bateria, a constante do movimento. A constante do trânsito, a constante da cidade. Os ônibus passando em círculos. A progressão do ritmo, repetido a exaustão, um ciclo conhecido por muitos. O ponto de ônibus, parada obrigatória desse universo. A única saída possível, a solução final.
A velha fazia o movimento que ninguém mais queria realizar. Andava de um lado para o outro, decidida a não se decidir. Ela não queria subir em ônibus algum. Ela não queria ser levada por ninguém, a velha queria conduzir. Sua escolha era permanecer ali, valsando na cara do universo. O senhor de terno poderia pensar que a presença dela não incomodava simplesmente porque ela não falou com ninguém. E por isso mesmo ele mal olhava pra ela. Já o jovem estava seguro dentro de sua quase imaculada banda sonora.
O ônibus verde se aproximava. O jovem se levantou, acenando. Queria e devia ser conduzido. A velha continuava a andar pelo ponto, ignorando o universo que existia pra lá do meio-fio. O jovem entrou no ônibus, sem olhar pra trás, pensando que a velha morreria ali para provar seu ponto. Ele sentou num dos últimos bancos vagos e encarou a única entrada possível para aquela condução. A velha havia acabado de entrar naquele universo. O jovem sorriu assustado.

domingo, 7 de outubro de 2012

Júlio, o produtor


 Júlio acordou com o nariz travado. Sentiu gosto de sangue nos lábios e desanimou com a perspectiva de acordar. Não havia muita coisa para fazer. Era uma segunda-feira qualquer e, para quem não trabalha, não há motivações extremamente fortes para sair da cama. Talvez se animasse em tentar lembrar o que diabos aconteceu na noite anterior. Acordara de calça jeans e camisa surrada. O vermelho da camisa se confundia com o sangue que brotava lentamente do seu lábio inferior. Estava inchado, fruto de alguma desventura ainda não recordada. Havia se acostumado com tal configuração, pois naturalmente não era a primeira vez que isso tinha acontecido. Podia contar em uma mão, 5 anos atrás sua missão havia começado.
Eram meretrizes, garçonetes, advogadas, contadoras, relações públicas. Mulheres da vida e mulheres de respeito, metaforizadas pela independência financeira e social. Júlio não acreditava em feminismo, porém não era um machista nato. Seus dias de semana eram meio nebulosos, imersos numa dormência misturada com malemolência e desenvoltura, que nem mesmo ele conseguia acreditar. Seu fascínio emergia de seu estado semi-consciente. Chegava em bares exóticos por volta das 8 horas da noite e encarava sua rotina noturna com disciplina. Tomava de dois a quatro drinques, nunca repetidos. Os garçons eram simpáticos e solícitos, admirados pelo pedidos inusitados de Júlio. Ignorava cerveja valorizando destilados. 
Suas supostas vítimas observavam vez ou outra o modus operandi do rapaz, que pouco interagia com o ambiente na primeira hora de permanência. Logo perdia o controle de seus atos e minutos depois estava transando. Na casa dela, na casa dele. Violentamente, como se não houvesse amanhã. Animais enroscados na luta mais mortal e íntima que alguém poderia imaginar. Tudo exposto ali, na mesa da sala, no balcão da cozinha, no chão da sala com a televisão ligada, embalados pelo jazz  que tocava alucinadamente no canal de música. Perdão a James Brown e Stevie Wonder, Júlio tinha outras preferências. Quanto aos clichês sexuais, invente outros, caso queira.
Júlio exalava um cheiro que descontrolava. Após o segundo drinque, ele brincava com o copo, passando seu dedo indicador sobre a borda vítrea em movimento circulares, puxando a engrenagem, o mecanismo da atração, mais próximo de si. Seu encanto se confundia com seus cabelos negros e lisos, escorridos, a esconder seus olhos. Ele gostava de encarar o chão. A gravidade insistia em determinar como ele estaria exposto. A testa escondida, os olhos presos pela franja, sua liberdade condicionada ao sabor da gravidade. O copo que segurava costuma deslizar por sua mão lisa, sem calos. Na adolescência, lá na época do segundo colegial, Júlio respondia por "mão-furada". Os amigos adoravam gritar seu apelido durante a educação física. Curioso é que fez somente uma cesta em toda sua época escolar: Maria Helena. Ninguém nunca soube. Mas para Júlio, ele nunca mais poderia ser "mão-furada". Machismo da parte dele.
Quanto a noite anterior, Júlio conseguiu lembrar apenas daquela salto alto negro, enquanto escorava suas costas sobre o apoio da cama. As pernas finas, branquíssimas, embaladas por um vestido preto. Subindo pela cintura, um cinto prateado minimalista abraçava a mulher, prendendo seu abdômen a seda que compunha o vestido. O decote era gracioso. Suas amigas riam, próximas ao balcão do bar exótico da noite. Júlio escutava algo, mas estava mais preocupado em tomar seu Bloody Mary. Ele poderia pensar que o tal sangue que agora escorria de seu lábio seria resquício do drinque, porém a questão não tem uma resposta tão deus ex maquina assim. E, na verdade, não faria o menor sentido.
A mulher de decote gracioso era loiríssima, original. Tomava uísque. Inusitada, puxou papo sobre esportes. Cutucava Júlio, expert televiewer de ESPN. Virara o resto do seu drinque e comera o pedaço de vegetal que enfeitava o copo. Interrompeu graciosamente a mulher. Enfatizou que LeBron James era, de fato, um gênio do basquete atual. A mulher discordava. Os dois gostaram da situação. Ao lado de Júlio, no balcão, um rapaz, de mesma idade, imagino eu, concordava com o rapaz. Gritava empolgado, dizendo que acompanhava os jogos da NBA todos os dias. Parecia desesperado por atenção, o que é bem óbvio na situação atual. Digamos, em tempos de Facebook, todo mundo quer curtir alguma coisa (obrigado pela atenção dispensada, leitor).
Mulher e Júlio se calaram, observando a cena do rapaz empolgado. "Mão-furada, é você?!" grita o rapaz, empolgado, mais uma vez. Subitamente, Júlio voa com a mão direita em direção ao rosto do empolgado. Vidros quebraram, atenções voltadas a cena. O empolgado voou em direção a Júlio. A briga aconteceu e a mulher decote gracioso observava, excitada. No fim das contas pouco sangue rolou. A mulher foi embora com as meninas, mas não parava de encarar Júlio, empolgava com a briga. Ele e empolgado estavam caídos no chão, exaustos por causa de alguém que faz cesta facilmente.
Júlio riu e começou a traçar o plano pra noite que viria em breve. O sangue do lábio já estava estancado. 
                         

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fogueira entre as pedras - Direto de 2006 (Parte 04)

Após alguns dias, Roberto lembraria daquela menina do casarão. Ela possuía um estilo totalmente novo no que dizia respeito à música. Era como se as notas mais agudas quebrassem espelhos.
Ele, com seu trompete, poucos cabelos e diploma em música, tocara antes de Amanda, a pianista loira. Depois das apresentações, os pais da garota fizeram um convite a Roberto. Eles gostariam que ele se apresentasse com a filha. Chegado o momento da apresentação, o piano acabara por hipnotizá-lo.
Sua noiva começou a se questionar porque isso acontecera. Roberto não poderia responder. Ele tentara acompanhar a pianista inicialmente, porém suas primeiras notas o desarmaram. Na tentativa de safar da situação com classe, a única opção foi dar uma risada contida e enfatizar o talento da menina. Os pais não esconderam a alegria pelo elogio, apesar de toda pompa que o evento envolvia.
Quase no final da festa, Roberto pediu para que sua noiva o esperasse no carro e guardasse o trompete enquanto ia ao banheiro. Para tanto, pedira informação a anfitriã. Logo depois que saiu do banheiro, ele avistara Amanda no corredor. Ele correu atrás dela e pegou-a pelo braço, sem que ela o visse. Acendeu seu isqueiro, ateou fogo no cabelo de Amanda e jogou-a no banheiro.
Com passos apressados e jurando escutar gritos, Roberto dirigiu-se ao carro e foi embora. Sua futura esposa não perguntou nada.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Olhe vagamente a parede - Direto de 2006 (Parte 03)


Estávamos viajando pelo estado do Espírito Santo. Eu apenas ia aonde deveria ir, onde me diziam pra ir. Nada me desagradava. Os hotéis, em sua maioria, 3 estrelas, não atendiam as exigências ególatras do resto do grupo. Em um desses hotéis, enquanto eles quebravam as camas, eu jurei ver peixes-espadas na parede do banheiro. Depois da visão, me joguei no chão e escutei um barulho de vidro que parecia vir do quarto ou algo do gênero.
O que mais me deixava intrigado era que, em vez deles saírem do quarto e pedirem para ir para outro hotel, eles simplesmente destruíam o lugar em que nos hospedavam. Nunca tive problemas com isso. Tanto com os quartos ou com a banda. Simplesmente fazia meus solos e eles aprovavam. Nos ensaios era sempre assim. Logo depois do sinal de dedo polegar pra cima, eles voltavam para seu estado de transe musical. Continha meus risos. Ei, eu não tinha culpa. Claro que gostava do som, mas não conseguia me entregar como eles faziam.
Já o público parecia gostar dos shows. Tudo o que eu via eram peixes-espadas pulando loucamente no teto. Ou queria ver. Em um dos shows pelo estado, estávamos tocando nossa quinta música, pouco conhecida pelo grande público, e antes do meu solo, eu desmaiei. Caí na direção dos fãs e eles me seguraram. Uma parede humana amortecera minha queda.
No hospital escutei as palavras “para sempre”. Por favor, não pense que usava drogas. Eu era usado por elas por um propósito. Só não lembro mais qual era.
Hoje, preso nesse quarto de asilo e olhando a parede que fica do lado de minha cama, eu recordo, e agora compreendo, nessas linhas o que sobrou na parede da minha memória. O “para sempre” do doutor tinha relação com a banda. Por isso, desde aquele dia a banda tinha acabado. E desde aquele dia, nunca mais encontrei ou ouvi falar dos outros integrantes. Devem estar quebrando quartos de asilo, enquanto eu olho vagamente paredes.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Comece por quebrar os espelhos - Direto de 2006 (Parte 02)



Se Amanda pudesse consertar espelhos, começaria selecionando apenas os cacos necessários. A imagem seria incompleta, porém os buracos nos semi-espelhos trariam a verdade. Ela acreditaria nisso.
Quase sempre dentro de seu quarto, seus pais acreditavam no bom desenvolvimento da filha. Preocupada em tocar piano arduamente, suas composições invadiam os cômodos do imóvel de 3 andares. A curiosa empregada, quando passava pelo cômodo musical, observava o tom épico com que a pequena pianista se entregava. Após 6 anos de aulas e estudos, Amanda começara a escrever partituras, influenciada por pianistas conhecidos e por seu professor. Quanto mais tocava, mais simples tornavam-se suas composições. E com essa transformação, a empregada passara a enxergar a menina dedicada de cabelos loiros como criadora de ambientes. O ambiente pesado que a casa carregava foi amenizado pelas notas reverberantes.
Nas festas de família, Amanda agradava os presentes com a graça de seus pequenos dedos. Geralmente tinha o costume de improvisar ao piano, pois não desejava que suas músicas fossem escutadas. Num futuro próximo ela perderia o medo de mostrá-las. Como? A empregada a ajudaria.
E a mágica dos cacos de espelho iria funcionar.  
O final da história você pode inventar.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Animais - Direto de 2006



Sapos

Três dedos que indicam dois caminhos: afogar ou ser enterrado. Do comum verde, olhos atentos e língua esperta, o ser úmido desliza pela vida dupla. Alegria das crianças que vão vê-lo com as mãos e nojo dos adultos que pisam na criatura. Na altura da transição, lugares molhados e escuros são acolhedores assim como abençoados. Longos saltos rumo a uma mosca. A língua do sapo salta sem pensar nas conseqüências e represálias. Dos mergulhos que desesperam seus filhos girinos, temerosos pelo movimento da água, a volta para a superfície é triste.
À nossa relação regada à umidade. Você, com suas mãos pegajosas, deitada no tapete chora por medo de secar. Meu pedido sempre é atendido, sua entrega fria ao meu desejo flamejante. O choque imediato provoca a explosão que estamos acostumados e nunca cansamos. A visão de suas costas salta-me os olhos. Provocação deslizante.






Panteras

Os olhos da pantera mentem sobre sua natureza. Preguiça escura ou não, preocupa-se em apenas estar presente na fila da fome do meio-dia observando a carne vermelha saltitar pelos verdes ou amarelos vales. Cuida dos filhotes como se fossem bichos felpudos e atravessa selvas de olhos fechados, após a meia noite. Trepa objetos e seus companheiros com um desespero de provocar inveja à poucos.
Tantas sobras do meio dia servem para esconder o animal dentro do animal que a pantera é. Servida de lucidez e paciência, o único dom que mostra ter é o silêncio. Silêncio quebrado quando chega sua vez na fila da fome. A educação à mesa nunca foi o seu forte.
A pantera transita em um cubo dividido meio a meio. Metade horizontal superior é a frieza selvagem e a metade horizontal inferior composta de gritos, urros e simples mios. Ela tem sua fraqueza quando tenta bancar a criança.







Ornitorrinco

        A palha entre os pêlos invade os olhos negros dessa extinção ambulante. Dos livros de biologia, nada mais pode ser do que um caco perdido da taxionômica evolução da irracionalidade. Bico negro como o orifício que brotam pequenos ovos, portadores da extinção. Vive recluso, calado, esperando sua vez. Representa a transição de vida, considerada ponte fundamental.
        Sua voz estoura os tímpanos, uma voz gralha e fraca, completo espelho de vontades extremas escondidas na negritude de seus olhos, espelho de sua tara. Te jogo na palha com uma rasteira devassa e te devoro no café-da-manhã exótico.