domingo, 7 de outubro de 2012

Júlio, o produtor


 Júlio acordou com o nariz travado. Sentiu gosto de sangue nos lábios e desanimou com a perspectiva de acordar. Não havia muita coisa para fazer. Era uma segunda-feira qualquer e, para quem não trabalha, não há motivações extremamente fortes para sair da cama. Talvez se animasse em tentar lembrar o que diabos aconteceu na noite anterior. Acordara de calça jeans e camisa surrada. O vermelho da camisa se confundia com o sangue que brotava lentamente do seu lábio inferior. Estava inchado, fruto de alguma desventura ainda não recordada. Havia se acostumado com tal configuração, pois naturalmente não era a primeira vez que isso tinha acontecido. Podia contar em uma mão, 5 anos atrás sua missão havia começado.
Eram meretrizes, garçonetes, advogadas, contadoras, relações públicas. Mulheres da vida e mulheres de respeito, metaforizadas pela independência financeira e social. Júlio não acreditava em feminismo, porém não era um machista nato. Seus dias de semana eram meio nebulosos, imersos numa dormência misturada com malemolência e desenvoltura, que nem mesmo ele conseguia acreditar. Seu fascínio emergia de seu estado semi-consciente. Chegava em bares exóticos por volta das 8 horas da noite e encarava sua rotina noturna com disciplina. Tomava de dois a quatro drinques, nunca repetidos. Os garçons eram simpáticos e solícitos, admirados pelo pedidos inusitados de Júlio. Ignorava cerveja valorizando destilados. 
Suas supostas vítimas observavam vez ou outra o modus operandi do rapaz, que pouco interagia com o ambiente na primeira hora de permanência. Logo perdia o controle de seus atos e minutos depois estava transando. Na casa dela, na casa dele. Violentamente, como se não houvesse amanhã. Animais enroscados na luta mais mortal e íntima que alguém poderia imaginar. Tudo exposto ali, na mesa da sala, no balcão da cozinha, no chão da sala com a televisão ligada, embalados pelo jazz  que tocava alucinadamente no canal de música. Perdão a James Brown e Stevie Wonder, Júlio tinha outras preferências. Quanto aos clichês sexuais, invente outros, caso queira.
Júlio exalava um cheiro que descontrolava. Após o segundo drinque, ele brincava com o copo, passando seu dedo indicador sobre a borda vítrea em movimento circulares, puxando a engrenagem, o mecanismo da atração, mais próximo de si. Seu encanto se confundia com seus cabelos negros e lisos, escorridos, a esconder seus olhos. Ele gostava de encarar o chão. A gravidade insistia em determinar como ele estaria exposto. A testa escondida, os olhos presos pela franja, sua liberdade condicionada ao sabor da gravidade. O copo que segurava costuma deslizar por sua mão lisa, sem calos. Na adolescência, lá na época do segundo colegial, Júlio respondia por "mão-furada". Os amigos adoravam gritar seu apelido durante a educação física. Curioso é que fez somente uma cesta em toda sua época escolar: Maria Helena. Ninguém nunca soube. Mas para Júlio, ele nunca mais poderia ser "mão-furada". Machismo da parte dele.
Quanto a noite anterior, Júlio conseguiu lembrar apenas daquela salto alto negro, enquanto escorava suas costas sobre o apoio da cama. As pernas finas, branquíssimas, embaladas por um vestido preto. Subindo pela cintura, um cinto prateado minimalista abraçava a mulher, prendendo seu abdômen a seda que compunha o vestido. O decote era gracioso. Suas amigas riam, próximas ao balcão do bar exótico da noite. Júlio escutava algo, mas estava mais preocupado em tomar seu Bloody Mary. Ele poderia pensar que o tal sangue que agora escorria de seu lábio seria resquício do drinque, porém a questão não tem uma resposta tão deus ex maquina assim. E, na verdade, não faria o menor sentido.
A mulher de decote gracioso era loiríssima, original. Tomava uísque. Inusitada, puxou papo sobre esportes. Cutucava Júlio, expert televiewer de ESPN. Virara o resto do seu drinque e comera o pedaço de vegetal que enfeitava o copo. Interrompeu graciosamente a mulher. Enfatizou que LeBron James era, de fato, um gênio do basquete atual. A mulher discordava. Os dois gostaram da situação. Ao lado de Júlio, no balcão, um rapaz, de mesma idade, imagino eu, concordava com o rapaz. Gritava empolgado, dizendo que acompanhava os jogos da NBA todos os dias. Parecia desesperado por atenção, o que é bem óbvio na situação atual. Digamos, em tempos de Facebook, todo mundo quer curtir alguma coisa (obrigado pela atenção dispensada, leitor).
Mulher e Júlio se calaram, observando a cena do rapaz empolgado. "Mão-furada, é você?!" grita o rapaz, empolgado, mais uma vez. Subitamente, Júlio voa com a mão direita em direção ao rosto do empolgado. Vidros quebraram, atenções voltadas a cena. O empolgado voou em direção a Júlio. A briga aconteceu e a mulher decote gracioso observava, excitada. No fim das contas pouco sangue rolou. A mulher foi embora com as meninas, mas não parava de encarar Júlio, empolgava com a briga. Ele e empolgado estavam caídos no chão, exaustos por causa de alguém que faz cesta facilmente.
Júlio riu e começou a traçar o plano pra noite que viria em breve. O sangue do lábio já estava estancado. 
                         

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fogueira entre as pedras - Direto de 2006 (Parte 04)

Após alguns dias, Roberto lembraria daquela menina do casarão. Ela possuía um estilo totalmente novo no que dizia respeito à música. Era como se as notas mais agudas quebrassem espelhos.
Ele, com seu trompete, poucos cabelos e diploma em música, tocara antes de Amanda, a pianista loira. Depois das apresentações, os pais da garota fizeram um convite a Roberto. Eles gostariam que ele se apresentasse com a filha. Chegado o momento da apresentação, o piano acabara por hipnotizá-lo.
Sua noiva começou a se questionar porque isso acontecera. Roberto não poderia responder. Ele tentara acompanhar a pianista inicialmente, porém suas primeiras notas o desarmaram. Na tentativa de safar da situação com classe, a única opção foi dar uma risada contida e enfatizar o talento da menina. Os pais não esconderam a alegria pelo elogio, apesar de toda pompa que o evento envolvia.
Quase no final da festa, Roberto pediu para que sua noiva o esperasse no carro e guardasse o trompete enquanto ia ao banheiro. Para tanto, pedira informação a anfitriã. Logo depois que saiu do banheiro, ele avistara Amanda no corredor. Ele correu atrás dela e pegou-a pelo braço, sem que ela o visse. Acendeu seu isqueiro, ateou fogo no cabelo de Amanda e jogou-a no banheiro.
Com passos apressados e jurando escutar gritos, Roberto dirigiu-se ao carro e foi embora. Sua futura esposa não perguntou nada.