terça-feira, 30 de julho de 2013

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Como de costume descia a rua que dava acesso a grande avenida. Era uma caminhada curta, porém encontrava patética resistência. Eventuais lufadas de vento sopravam contra mim, dificultando de forma mínima a tarefa diária de chegar ao ponto de ônibus na avenida. Ao lado deste, estava a base do grande viaduto.  Rígido, impune ao tempo, flutuava sobre a grande avenida, zelando por nós. À mim, minha mochila e meu orgulho.
O vento era frio, cortante até, para aqueles desacostumados a receber de graça o desprezo dos veículos que subiam a rua em velocidade, o cheiro de grama molhada com resquício de fezes e a respiração de todos os veículos que passavam ali, na grande avenida. Era como se todos os caminhos levassem àquela ruazinha, aos meus olhos. O vento, o som, o cheiro.  Eu descia e olhava o chão, tomando cuidado com a calçada quebrada e com a vida à minha frente. Puxava minha mochila contra as costas.
Como de costume, levantava a cabeça e trocava olhares com um cachorro que vivia na base do viaduto, recostado em uma de suas duas colunas, numa pose meio egípcia. As patas esticadas à frente e o corpo de lado, esguio e de pele desbotada, num marrom gasto. O chão daquela base descia em diagonal, até morrer na avenida. Um espaço de concreto cercado por grades, forrado por papelões próximo as colunas azuis e imutáveis, fazendo às vezes de camas improvisadas. O caos sonoro da avenida parecia não incomodar o bicho, que me olhava com preguiça, pensando: “Mais um otário.“
Na outra coluna, três pombos se alimentavam de algo amarelo jogado sobre papelão. Milho, talvez. Um pombo gordo mancava e comia e outro de aparência saudável me encarava enquanto era bicado por um pombo agitado: alto, penas sujas e tortas, um olho fechado e aos saltos.  “Vocês dormem ondem comemos e defecamos e nós somos os sujos. “ dizia o pombo bicado.
Como de costume, mais ao fundo da base do viaduto, havia dois outros cães, cada qual num canto da grade. Dormiam. Assim como o homem que estava entre eles.  Papelões como cama e cobertores. Eu seguia meu caminho sem olhar pra trás.
A configuração daquela casa tornou-se rotineira. Aquele homem sem identidade, com o rosto virado para a grande avenida, talvez estivesse com os olhos cerrados, sentindo o vento, o som e o cheiro de tudo que eu sentia quase todos os dias. De costas para a rua angulosa, para calçada quebrada, para as grandes árvores farfalhantes, recebendo cosquinhas do vento.
Como de costume, eu ia trabalhar e nada disso interessava. Com mais  ou menos vento na cara, respiração da avenida nas ventas e/ou expectativa do meu ônibus rápido chegar ao ponto, eu iria trabalhar. Alguém iria fazer o sinal pro meu ônibus parar antes de mim e por isso não seria necessário levantar o braço. Alguém sempre fazia o trabalho de outrem. Minto, alguém sempre acaba fazendo o meus trabalho. Eu agradeço o coletivo aos montes.
Hoje eu acordei mais tarde. O frio havia dado uma trégua, apesar da neblina que encobria todo lugar acima e abaixo do meu apartamento. O despertador foi um canalha e deixou ser xingado por mim mais uma vez. “Mais um otário.“ O mundo não estava pronto para tirar uma camada de moletom, mas porque brigar com o óbvio, porque tomar banho agora?
Trilhei meu caminho com normalidade, minimizando o tempo do café da manhã, reduzido a duas bolachas de água de sal enfiadas no pote de requeijão light recém comprado. “Vocês dormem ondem comemos e defecamos e nós somos os sujos. “ Nada mais natural, assim como sair de mochila, mesmo que não apresente conteúdo algum.
Como de costume, voltava a descer a rua que dava acesso a grande avenida. Respirava pela boca, satisfeito em ver a fumaça que ainda saía desse órgão tão superestimado. O frio não fugira. Na grande avenida, os carros que vinham estavam a toda, sem trânsito aparente. O corredor de ônibus fluía como podia. Do outro lado, separados por uma mureta baixa de concreto insosso, os carros que iam fluíam vagarosamente, numa marcha lenta, porém calma.  O som de latidos invadiu meus ouvidos tampados pelo fiel capuz da blusa de frio que trajava.
Não havia trânsito, porém era patente que os motoristas voltavam do trabalho ou acabaram de acordar, voltando para a casa de suas respectivas famílias ou amantes. Os trabalhadores noturnos se acostumaram ao ritmo dos sonhos, numa espécie de entendimento de como deveria ser o dilatamento temporal e a ausência de ansiedade. A madrugada tem seu tempo próprio. Em caso contrário, os motoristas podiam estar apenas cansados num nível em que meu corpo de classe média pouco sentiu na vida.
No meio de caminho, fitei meus olhos em três cães brincando no canteiro paralelo e a margem da grande avenida. Seria simples mergulhar e nadar ali naquele rio de tráfego, já que a correnteza estava fraca. Claramente aqueles bichos eram os moradores da base do viaduto. Cada um amarrado a uma árvore com uma longa corda grossa, gasta e avermelhada. Dois deles rolavam na grama, ganiam e se mordiam.  Num tom de brincadeira, presumi.  Possível felicidade, se quiser. O cão de pose egípcia observava os dois cães empolgados. Estava sereno, de pé sob as quatro batas,  balançando o rabo, latindo para uma posição fixa que temi procurar.
A cada transeunte que passava, o show de latidos recomeçava. Aquele universo pertencia aos cães, suas cordas e suas árvores. A rua, seu território. Notei um homem subir e atravessar a rua em minha direção. Os transeuntes já chegam ao ponto de ônibus. Estávamos sozinhos, observados pelos três cães.
Ele carregava vários papelões nas costas e encarava o chão, pelo peso ou por vontade própria. Era o homem que dormia entre os cães na base do viaduto? Vestindo-lhe a cabeça, um boné de aba vermelha e, sob ele, um capuz escondiam sua face por completo. Era um homem identificado apenas por uma barba grande e branca que aparecia quando levantava vez ou outra sua cabeça. Usava chinelas gastas e pretas. Andava lento e calmo, como os carros que iam, passando ao largo da rua em que todos os caminhos convergiam. Cogitei parar meus pés, porém meu corpo desdenhou da razão apresentada. Desejei perguntar-lhe o que fazia e...não. Não era preciso.
Ele estava passeando com seus cães e repondo a reserva de camas e cobertores de sua família. O homem sem identidade e rosto estava trabalhando naquilo que lhe é mais caro e eu estava invadindo seu jardim. Os cães o protegiam, porém o homem jamais me encarou. E eu me metia a bisbilhotar sua casa todo dia antes de chegar ao meu ponto de ônibus. Pra ir trabalhar e comprar os meus papelões.

E as árvores ali continuavam a ignorar minha presença, naquele lugar que nada mais era que o centro do universo.