Como de costume descia a rua que dava acesso a grande
avenida. Era uma caminhada curta, porém encontrava patética resistência.
Eventuais lufadas de vento sopravam contra mim, dificultando de forma mínima a
tarefa diária de chegar ao ponto de ônibus na avenida. Ao lado deste, estava a
base do grande viaduto. Rígido, impune
ao tempo, flutuava sobre a grande avenida, zelando por nós. À mim, minha
mochila e meu orgulho.
O vento era frio, cortante até, para aqueles desacostumados
a receber de graça o desprezo dos veículos que subiam a rua em velocidade, o
cheiro de grama molhada com resquício de fezes e a respiração de todos os
veículos que passavam ali, na grande avenida. Era como se todos os caminhos
levassem àquela ruazinha, aos meus olhos. O vento, o som, o cheiro. Eu descia e olhava o chão, tomando cuidado com
a calçada quebrada e com a vida à minha frente. Puxava minha mochila contra as
costas.
Como de costume, levantava a cabeça e trocava olhares com
um cachorro que vivia na base do viaduto, recostado em uma de suas duas colunas,
numa pose meio egípcia. As patas esticadas à frente e o corpo de lado, esguio e
de pele desbotada, num marrom gasto. O chão daquela base descia em diagonal,
até morrer na avenida. Um espaço de concreto cercado por grades, forrado por
papelões próximo as colunas azuis e imutáveis, fazendo às vezes de camas improvisadas.
O caos sonoro da avenida parecia não incomodar o bicho, que me olhava com
preguiça, pensando: “Mais um otário.“
Na outra coluna, três pombos se alimentavam de algo amarelo
jogado sobre papelão. Milho, talvez. Um pombo gordo mancava e comia e outro de
aparência saudável me encarava enquanto era bicado por um pombo agitado: alto,
penas sujas e tortas, um olho fechado e aos saltos. “Vocês dormem ondem comemos e defecamos e nós
somos os sujos. “ dizia o pombo bicado.
Como de costume, mais ao fundo da base do viaduto, havia
dois outros cães, cada qual num canto da grade. Dormiam. Assim como o homem que
estava entre eles. Papelões como cama e
cobertores. Eu seguia meu caminho sem olhar pra trás.
A configuração daquela casa tornou-se rotineira. Aquele
homem sem identidade, com o rosto virado para a grande avenida, talvez
estivesse com os olhos cerrados, sentindo o vento, o som e o cheiro de tudo que
eu sentia quase todos os dias. De costas para a rua angulosa, para calçada
quebrada, para as grandes árvores farfalhantes, recebendo cosquinhas do vento.
Como de costume, eu ia trabalhar e nada disso interessava. Com
mais ou menos vento na cara, respiração
da avenida nas ventas e/ou expectativa do meu ônibus rápido chegar ao ponto, eu
iria trabalhar. Alguém iria fazer o sinal pro meu ônibus parar antes de mim e
por isso não seria necessário levantar o braço. Alguém sempre fazia o trabalho
de outrem. Minto, alguém sempre acaba fazendo o meus trabalho. Eu agradeço o
coletivo aos montes.
Hoje eu acordei mais tarde. O frio havia dado uma trégua,
apesar da neblina que encobria todo lugar acima e abaixo do meu apartamento. O
despertador foi um canalha e deixou ser xingado por mim mais uma vez. “Mais um
otário.“ O mundo não estava pronto para tirar uma camada de moletom, mas porque
brigar com o óbvio, porque tomar banho agora?
Trilhei meu caminho com normalidade, minimizando o tempo do
café da manhã, reduzido a duas bolachas de água de sal enfiadas no pote de
requeijão light recém comprado. “Vocês dormem ondem comemos e defecamos e nós
somos os sujos. “ Nada mais natural, assim como sair de mochila, mesmo que não
apresente conteúdo algum.
Como de costume, voltava a descer a rua que dava acesso a
grande avenida. Respirava pela boca, satisfeito em ver a fumaça que ainda saía
desse órgão tão superestimado. O frio não fugira. Na grande avenida, os carros
que vinham estavam a toda, sem trânsito aparente. O corredor de ônibus fluía como
podia. Do outro lado, separados por uma mureta baixa de concreto insosso, os
carros que iam fluíam vagarosamente, numa marcha lenta, porém calma. O som de latidos invadiu meus ouvidos tampados
pelo fiel capuz da blusa de frio que trajava.
Não havia trânsito, porém era patente que os motoristas
voltavam do trabalho ou acabaram de acordar, voltando para a casa de suas
respectivas famílias ou amantes. Os trabalhadores noturnos se acostumaram ao
ritmo dos sonhos, numa espécie de entendimento de como deveria ser o
dilatamento temporal e a ausência de ansiedade. A madrugada tem seu tempo próprio.
Em caso contrário, os motoristas podiam estar apenas cansados num nível em que meu
corpo de classe média pouco sentiu na vida.
No meio de caminho, fitei meus olhos em três cães brincando
no canteiro paralelo e a margem da grande avenida. Seria simples mergulhar e nadar
ali naquele rio de tráfego, já que a correnteza estava fraca. Claramente aqueles
bichos eram os moradores da base do viaduto. Cada um amarrado a uma árvore com
uma longa corda grossa, gasta e avermelhada. Dois deles rolavam na grama, ganiam
e se mordiam. Num tom de brincadeira,
presumi. Possível felicidade, se quiser.
O cão de pose egípcia observava os dois cães empolgados. Estava sereno, de pé
sob as quatro batas, balançando o rabo,
latindo para uma posição fixa que temi procurar.
A cada transeunte que passava, o show de latidos recomeçava.
Aquele universo pertencia aos cães, suas cordas e suas árvores. A rua, seu
território. Notei um homem subir e atravessar a rua em minha direção. Os transeuntes
já chegam ao ponto de ônibus. Estávamos sozinhos, observados pelos três cães.
Ele carregava vários papelões nas costas e encarava o chão,
pelo peso ou por vontade própria. Era o homem que dormia entre os cães na base
do viaduto? Vestindo-lhe a cabeça, um boné de aba vermelha e, sob ele, um capuz
escondiam sua face por completo. Era um homem identificado apenas por uma barba
grande e branca que aparecia quando levantava vez ou outra sua cabeça. Usava
chinelas gastas e pretas. Andava lento e calmo, como os carros que iam,
passando ao largo da rua em que todos os caminhos convergiam. Cogitei parar
meus pés, porém meu corpo desdenhou da razão apresentada. Desejei perguntar-lhe
o que fazia e...não. Não era preciso.
Ele estava passeando com seus cães e repondo a reserva de
camas e cobertores de sua família. O homem sem identidade e rosto estava
trabalhando naquilo que lhe é mais caro e eu estava invadindo seu jardim. Os
cães o protegiam, porém o homem jamais me encarou. E eu me metia a bisbilhotar
sua casa todo dia antes de chegar ao meu ponto de ônibus. Pra ir trabalhar e
comprar os meus papelões.
E as árvores ali continuavam a ignorar minha presença,
naquele lugar que nada mais era que o centro do universo.