segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Sonho

Há tempos um sonho é recorrente. Não em enredo, mas sim nos poderes contemplados. É fim de tarde e estou a viajar de ônibus entre dois estados amigos. De um lado as raízes da família, estado de origem, e do outro o destino de futuro imprevisível carregado numa mochila pousada sobre meus pés. São vinte anos sentados na poltrona do corredor do lado direito e ao fundo do ônibus. O lusco-fusco tranquiliza minhas retinas. Na poltrona da janela ao meu lado, um senhor magro de barba, calvo e grisalho, carrega consigo uma maleta preta no colo e observa os morros verdes plantados com vacas e cavalos desconhecidos. O terno desajustado ajuda a compor a cerimônia da situação.
- Sua mãe não gostou. – disse ele com a vista fixa para o exterior.
Com a mochila à tira colo, encontro-me fora do ônibus, montado em um dos cavalos desconhecidos. Sem controle sobre os atos do animal, uma perseguição acontece por segundos, tempo necessário para perceber que o velho não se encontra mais em sua poltrona, substituído por outra figura em pé, igual a mim. A visão é o único sentido que tenho controle e nela sou obrigado a acreditar. Encaro meu duplo e ele repete o ato, bem como um reflexo deveria fazer, sem o intermédio de um espelho.
A noite começa. O ônibus aumenta o passo e o cavalo desanima de acompanhá-lo e pára. Observo minha antiga condução se distanciar até o ponto em que ela explode. Sinto meu corpo se contorcer por dentro. Tremo. O cavalo começa a correr para a explosão. Tento me desvencilhar dele, soltar as rédeas, desmontar, correr na direção contrária enquanto grito, porém quanto mais eu tento me mexer sem sucesso, mais o cavalo corre para as chamas. Camisa de força psicológica, suspeito. Cerro os olhos, ciente de que estou num pesadelo, pronto para acordar, suado e ofegante. Ao abrir os olhos, vejo um dos destroços do ônibus voar sobre mim. Sou atingido na cabeça.
É manhã, o sol bate contra meu braços. Acordo em pé em um morro a beira de um precipício. A única saída parece ser uma ponte de madeira curta e estreita que leva a outro morro. Lá, silhuetas gesticulam, balançando os braços num misto de cumprimento e despedida.
- Eu disse que sua mãe não gostou! – o grito ecoa atrás de mim.
Viro e reconheço a figura do velho de terno. Ele parte para cima de mim com sua maleta preta. Corro para a ponte, incentivado pelas silhuetas agora visíveis de meus pais. Eles dizem meu nome, calmos e complacentes.
Um som oco e pesado reverbera contra a madeira da ponte. Minha mãe grita e chora pedindo cuidado. Transfiro todas as forças para as pernas, numa corrida alucinada até o final da travessia. Chego do outro lado do morro, recepcionado por ninguém.
- Ei, você esqueceu isso. – a voz joga meu olhar para a ponte.
O duplo caminha em minha direção e leva na mão esquerda a maleta preta do velho. Tremo. Meus músculos não reagem ao estímulo da visão incompreensível. Paralisado, cada passo mais próximo do duplo sinaliza a impotência desnecessária de minha condição. Corro sem sair do lugar. Grito sem vocalizar. Ajo sem completar. Penso sem concluir. Meus olhos são meu único ataque e defesa, e só posso observar o reflexo de minhas ações interrompidas.
O duplo finalmente chega ao meu encalço. Ele é exatamente como eu, mas possui uma barba bem cultivada, distinta de meu rosto imberbe. Ainda permaneço preso dentro de meu corpo imóvel que insiste em tentar correr estupidamente.
- Porque você não corre? Eu correria se fosse você, mesmo que não leve a lugar nenhum.
Pisco meus olhos, concordando com o absurdo. Ele respeita o momento, até desferir golpes de maleta contra mim. A velocidade dos ataques aumenta e sinto cada baque com gravidade. Por fim, ele me empurra do precipício com um sorriso nos lábios.
- Boa viagem, velhote. – ele se despede.
          O pesadelo acaba e acordo com 30 anos de idade, barbado e com uma maleta preta na mão esquerda. O espelho nunca não mente.

domingo, 8 de novembro de 2015

Aloha!

“Oi, tudo bem? Fala de onde? O que faz em São Paulo? Os dois ao mesmo tempo? E não é daqui? Deve ser difícil se manter desse jeito, né? Trabalhar nessa área é bacana? Se eu gostaria de fazer algo nesse sentido? Sou suscetível a convites assim como tu, mas não quer apressar as coisas, confere?
E come tanto assim? Se meus pratos pesam a valer? Minha barriga treme a nível de terremoto quando pulo, isso te responde a pergunta? E você só viu agora? A política das aparências anda em baixa? Costumo optar pela sinceridade e devo acrescentar que ela pode ser um ponto forte seu, acertei? Os estudos tão fortalecendo sua mente?
Haveria melhor jeito de começar nossa conversa? Imagina, a gente conversa faz um tempo, pode dizer o que pensa, não é mesmo, cúmplice? Claro, também já matei alguns, mas não entram na conta, né? Não nesse sentido, de forma mais metafórica, tipo pular na piscina sabendo que não há água pra aparar a queda? Drogado?
A gente vive caindo e continua acreditando em muita coisa antiquada? Somos parecidos então? Tô quase acreditando em ti com essa história de matar os outros, daria uma boa história pra se contar ao vivo, né? Ah, destruidor de lares? Agora faz mais sentido?
Uma cerveja é clichê? Destilados? E bebe tanto assim? Persuasivo, eu? Se tenho 20? Minha atenção não foca só no que é esfregado na minha cara? Por isso? Me chamou de velho? E estranho no bom sentido? E eu sou o persuasivo aqui? Perdi muita coisa pra tentar conseguir algo? Então estamos falando no nível filosófico? Que bom que eu te entendo, né?
Podemos escrever um livro juntos? Esperteza não vem de berço? Mais o quê? E o silêncio mata? Cansando dessa vida? Açougue tem mais pele de qualidade? Os aplicativos são cruéis, não concorda? E demissão dessa vida não é considerável? Existe um estudo dizendo que signos explicam isso? Eles explicam nossa relação? Desde quando mudamos pra “relacionamento”? Tu nunca teve um e quer agora? Serei sua cobaia? Gosto de ler ao contrário e tu decide quando eu leio certo? Que afirmativo da tua parte, certezas não vendem no mercado? Senso comum tá aí pra provar isso, não?
A sensação de satisfação não vem mais dar as caras e tu já considera pedir pra entregar na tua casa? Bem, famílias costumam dar nos nervos como ninguém, né? Teu ex era pior? E olha que tu nunca namorou, correto? Mas podemos pensar no futuro próximo? Isso pode me dar idéias? Posso me dar a liberdade de cogitar isso? Tarde demais, não acha?
Então, vamos nos conhecer?”

“Não, não vamos, eu não gostei da sua aparência. Valeu pela conversa. Adeus e boa sorte, se precisar.”