Há
tempos um sonho é recorrente. Não em enredo, mas sim nos poderes contemplados. É
fim de tarde e estou a viajar de ônibus entre dois estados amigos. De um lado
as raízes da família, estado de origem, e do outro o destino de futuro
imprevisível carregado numa mochila pousada sobre meus pés. São vinte anos
sentados na poltrona do corredor do lado direito e ao fundo do ônibus. O
lusco-fusco tranquiliza minhas retinas. Na poltrona da janela ao meu lado, um
senhor magro de barba, calvo e grisalho, carrega consigo uma maleta preta no
colo e observa os morros verdes plantados com vacas e cavalos desconhecidos. O
terno desajustado ajuda a compor a cerimônia da situação.
- Sua
mãe não gostou. – disse ele com a vista fixa para o exterior.
Com a
mochila à tira colo, encontro-me fora do ônibus, montado em um dos cavalos
desconhecidos. Sem controle sobre os atos do animal, uma perseguição acontece
por segundos, tempo necessário para perceber que o velho não se encontra mais
em sua poltrona, substituído por outra figura em pé, igual a mim. A visão é o
único sentido que tenho controle e nela sou obrigado a acreditar. Encaro meu
duplo e ele repete o ato, bem como um reflexo deveria fazer, sem o intermédio
de um espelho.
A
noite começa. O ônibus aumenta o passo e o cavalo desanima de acompanhá-lo e
pára. Observo minha antiga condução se distanciar até o ponto em que ela
explode. Sinto meu corpo se contorcer por dentro. Tremo. O cavalo começa a
correr para a explosão. Tento me desvencilhar dele, soltar as rédeas, desmontar,
correr na direção contrária enquanto grito, porém quanto mais eu tento me mexer
sem sucesso, mais o cavalo corre para as chamas. Camisa de força psicológica,
suspeito. Cerro os olhos, ciente de que estou num pesadelo, pronto para
acordar, suado e ofegante. Ao abrir os olhos, vejo um dos destroços do ônibus
voar sobre mim. Sou atingido na cabeça.
É
manhã, o sol bate contra meu braços. Acordo em pé em um morro a beira de um
precipício. A única saída parece ser uma ponte de madeira curta e estreita que
leva a outro morro. Lá, silhuetas gesticulam, balançando os braços num misto de
cumprimento e despedida.
- Eu
disse que sua mãe não gostou! – o grito ecoa atrás de mim.
Viro e
reconheço a figura do velho de terno. Ele parte para cima de mim com sua maleta
preta. Corro para a ponte, incentivado pelas silhuetas agora visíveis de meus
pais. Eles dizem meu nome, calmos e complacentes.
Um som
oco e pesado reverbera contra a madeira da ponte. Minha mãe grita e chora
pedindo cuidado. Transfiro todas as forças para as pernas, numa corrida
alucinada até o final da travessia. Chego do outro lado do morro, recepcionado
por ninguém.
- Ei,
você esqueceu isso. – a voz joga meu olhar para a ponte.
O
duplo caminha em minha direção e leva na mão esquerda a maleta preta do velho.
Tremo. Meus músculos não reagem ao estímulo da visão incompreensível.
Paralisado, cada passo mais próximo do duplo sinaliza a impotência desnecessária
de minha condição. Corro sem sair do lugar. Grito sem vocalizar. Ajo sem
completar. Penso sem concluir. Meus olhos são meu único ataque e defesa, e só
posso observar o reflexo de minhas ações interrompidas.
O
duplo finalmente chega ao meu encalço. Ele é exatamente como eu, mas possui uma
barba bem cultivada, distinta de meu rosto imberbe. Ainda permaneço preso
dentro de meu corpo imóvel que insiste em tentar correr estupidamente.
-
Porque você não corre? Eu correria se fosse você, mesmo que não leve a lugar
nenhum.
Pisco
meus olhos, concordando com o absurdo. Ele respeita o momento, até desferir golpes
de maleta contra mim. A velocidade dos ataques aumenta e sinto cada baque com gravidade.
Por fim, ele me empurra do precipício com um sorriso nos lábios.
- Boa
viagem, velhote. – ele se despede.
O pesadelo acaba e acordo com 30 anos de idade, barbado e com uma maleta preta na mão esquerda. O espelho nunca não mente.
O pesadelo acaba e acordo com 30 anos de idade, barbado e com uma maleta preta na mão esquerda. O espelho nunca não mente.