sábado, 13 de novembro de 2010

O peso do ar

Cinco suspiros separam-na da convenção. Respiração profunda, assegurada pela massa homogênea e invisível, o ar. Combustível coeso para o começo do fim da convenção. O ar é o único elemento que divide o comportamento padrão do comportamento dito anormal. A passagem: aberta pelos personagens sensíveis da História.
Seguidos de cinco suspiros, ela não enxergava o mundo. Através do ar, o mundo se apresentava à ela, revelando suas conexões, seu funcionamento, suas falhas. Ela então traçava retas, planos e roteiros à se cumprir, porém não conseguia realizá-los. O comportamento anormal exige planejamento, enquanto a normalidade clama por ações.
Os humanos vivem como animais, respondendo a estímulos em segundos, desprovidos de consciência, presos ao presente, consumidos e consumindo. Ela os inveja, pois sabe que a alienação comum é a salvação dos anormais sendo que a insanidade salva a alma dos normais. Rodeado por seus amigos, ela sofre rejeições invisíveis.
Ao seguir combatendo sua anormalidade, ela começa a perder o tato social normal. Embates seculares dividem os solitários dos verdadeiros revolucionários, aqueles que militam contra o comportamento padrão, destinados a serem abocanhados pelo rótulo de loucos. A moça transita entre as duas versões do mundo: aquele se entrega a ela e aquele que se impõe, e está ciente de sua condição miserável.
Socialmente, ela deveria estar brilhando, capaz de operar em dois códigos diferentes, dados/criados pela História, mas percebe o dano real que isso pode causar. Relações óbvias que se estendem como um tapete, um carpete assentado pelo peso do tempo, soam como a morte.
Ela anda pelas ruas com seu namorado. Não dão as mãos. Não há troca de olhares. Ela sorri para o nada e insiste em andar de cabeça baixa, observando o que há a sua volta, de modo a não dirigir seu olhar para o namorado.
Então é nesse momento que ela suspira. Cinco vezes. O ar a leva para o outro lado. E a insanidade já perdeu a graça.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Receita alheia

Mário estende a mão para Bruno:
- Talvez esperamos demais, sentados com os pés balançando.
- A mente tranqüila e o corpo inquieto, né? Tá querendo o quê? – questiona Bruno.
- Me passa logo essa pá, tem que ser rápido – exige Mário.
- Calma, dá tempo.
- Duvido muito, ainda mais se continuar desse jeito. Anda logo, a pá.
- Toma então.
Bruno pega a pá e acerta o rosto deMário. O fraco desenho de sangue em linha reta se forma. As gotas lentamente preenchem o pequeno sulco feito na terra pelas mãos de Mário. Seria um jardim. Bruno vê Mário deitar-se no chão com as mãos no rosto. Os vizinhos devem se conhecer a uma semana. Serão grandes amigos.
Sábado de manhã, as esposas trocam receitas. Susana, esposa de Bruno, vê o acidente pela janela da cozinha de Patrícia, mulher de Mário. Molho de tomate humano para o almoço, a terra se alimenta.
O livro de receitas de Susana cai no chão.
- Meu Deus, Bruno, o que você fez? – Susana corre para a varanda.
Bruno ajuda Mário a se levantar. Patrícia observa o movimento de Susana e a segue num ato involuntário.
- Seu idiota – Mário soca Bruno – sabe a diferença entre me passar a pá e jogar ela em cima da minha cara?
Ambos caem na terra. Sangue, socos, roupas sujas. Homens na terra, feminina platéia.
Há mais ou menos uma semana, Mário, psicólogo, e Patrícia, advogada, se mudaram para o bairro nobre de Veneza. Casas separadas por pequenas cercas, estilo americano. Norte-americano. Dois carros na garagem, filho recém-nascido, condomínio fechado, classe média alta. Eles procuravam tranqüilidade. Bem, talvez.
Bruno não gostava dos antigos vizinhos e Susana gostava de dizer, mesmo que não assumisse:
- Se você não tivesse arrumado aquela confusão com a Marta, ela e o Vítor ainda morariam aqui.
- Já disse que eu não fiz nada demais – era o que Bruno repetia.
Marta era, de fato, meio descontrolada. Um mês antes de se mudar, ela invadiu o jardim da frente dos vizinhos no meio da noite:
- Queria ver se era mesmo grama natural, querido.
Sua motivação, incomum, compatível com sua rotina de rolar na porta de sua casa com um maio de ginástica antes de buscar o jornal matinal para seu marido. Machismos à parte, Marta poderia ser um cachorro. Talvez Mário pudesse explicar as particularidades da antiga vizinha, comportamento animal motivado pela grama, natureza?
Na plenitude de suas faculdades mentais, Susana se deliciava com a possibilidade de Bruno ter encantando Marta de alguma forma, corrompido-a. Afinal, ele era aposentado e, aos olhos da mulher, jovem demais para estar, digamos, desocupado aos quarenta anos. Nem Bruno saberia responder o porquê da aposentaria precoce. Eu mesmo não sei com o quê ele trabalhava. E Susana apenas sabia que a palavra “exército” era constante nas conversas com seu marido na época em que ele era integrante da população economicamente ativa do país.
Os casais vizinhos jantavam juntos uma vez por semana, às vezes sem a presença de “Vítor, o misterioso”. Marta e Susana travavam uma guerra culinária não-declarada: quem preparava os melhores pratos? Susana sabia que suas secretas encomendas ao chef local eram definitivamente melhores que o meticuloso cardápio que Marta planejava com notável perfeição.
- Esse filé mignon está maravilhoso, Marta.
- É, me esforcei muito dessa vez, Susana.
- Mais? Cuidado com a pressão, querida.
Nesse dia indefinido de jantar na casa de Marta e Vítor, Bruno notou a tensão culinária. Não queria comentar nada com a esposa. Porém quando voltaram para casa o marido, motivado pelas cinco taças de vinho que tomara com voracidade, disse à esposa:
- Essa briga de vocês tá ficando feia hein?
- Briga, querido? Que briga?
- Não precisa fingir, te conheço mulher.
- Ah, só estou testando ela. Quero ver se ela vai perceber que vai ser meio difícil ela ganhar do nosso chefe secreto.
Insira sua risada maléfica aqui.
- Vai com calma, meu bem. Agora vem cá.
O casal foi pra cama. Sexo marcado no cronômetro, treinamento militar.
“O que posso fazer?” pensou Susana quando notou que Bruno poderia perder a luta contra Mário. O rosto do marido já estava ficando inchado. Sangrando, Mário grunhia.
Passada uma semana do jantar, Bruno observou Susana ao telefone fazendo o pedido do tradicional jantar dos casais. Segundo Marta, Vítor havia confirmado presença. À noite, o primeiro casal recebe o segundo. Bruno se ofereceu para cuidar do forno enquanto Susana recebia Marta e Vítor. Depois de muita insistência, ele conseguiu convencer a mulher a deixá-lo servir a comida. Bruno recheou todos os pratos com pimenta.
Vítor ficou maravilhado com a ardência, Bruno comeu devagar. Marta não conseguiu comer. Susana desconfia do marido:
- Querido, o que aconteceu na cozinha?
- Não sei. Apenas servi a comida. Tem algo de errado?
- Não usei pimenta nesse molho de tomate.
- Tudo bem, Susana. Tem dias que a gente erra a mão, – comenta Marta, triunfante. Ela não consegue fingir seu sorriso – dá pra comer.
Ao final do jantar, Vítor esboçou satisfação com as mãos na barriga. Marta, com o prato quase cheio, disse que precisava ir. Todos se despedem, a porta de fecha. Susana se vira para Bruno:
- O que diabos o senhor fez na cozinha antes servir o jantar?!
- Um teste, querida. Deu certo.
- Deu certo né? Viu o que você fez? A Marta tá achando que ganhou.
- Ah, Susana, você tem coisa melhor pra fazer.
Susana suspirou como se concordasse. No dia seguinte Vítor e Marta se mudaram sem avisar. Talvez ela tenha mesmo pensado que ganhou a guerra e, por isso, decidiu ir embora para conservar essa sensação. Foi Bruno quem se sentiu vitorioso. Susana decidiu não encomendar mais nada do chef.
- Chega, vocês dois! Chega! – esbraveja Patrícia.
Assustados, Bruno e Mário param de se espancar.
- Foi ele quem começou, amor.
- Não quero saber, Mário. Vai pro chuveiro agora.
Bruno se levanta e pede desculpas a Mário pela palhaçada. Eles apertam as mãos.
- Querido, viu como a Patrícia manda no Mário?
- É, fiquei assustou.
- Vou começar a fazer isso contigo agora, amor. Que acha?
- Acho que tá precisando de uma pimenta pra acordar, amor.
Susana ri. Bruno, ensangüentado e sujo de terra, dá a mão à sua mulher. Eles rumam em direção a casa deles. Bruno comenta:
- E tudo isso só por causa de um jardim. Eu nem queria acertar o Mário dessa vez.