quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Por nada

O meu avô decidiu se entregar de uma vez. Pediu que todos os familiares se reunissem. Todos que lembrava como sendo familiares. Fui o mensageiro. Contei para todos sobre a reunião no sótão naquele domingo idiota. É, ninguém foi. Apenas eu, mais por curiosidade do que por compaixão pelo velho de cabelos vermelhos. Sabia que encontraria o corpo do Senhor Sem Memória e teria que dar um fim nele, mas a curiosidade de saber como seria o rosto de um morto me excitava ao ponto de ignorar o trabalho sujo que teria que fazer. O choque foi inevitável, é claro.
Pela estupidez de ter amado todos os familiares como se fossem bebês despreparados para o mundo. Pelo incidente que causara no último Natal, quando quis discursar sobre a importância de demonstrarmos o que sentimos. Por ter chorado toda dia que acordava, depois dos 70 anos, ao lembrar que pensar nos outros era uma merda inventada pela Igreja. Por precisar de remédios para viver, antes dos 10 anos. Pela fé que criou sobre a suposta inocência da mãe, quando traiu o marido com a minha avó e que pensava em acabar com a vida familiar e com os sonhos de meu avô criança.
Pelos prêmios de Honra ao Mérito que recebera dos escoteiro-mirins quando era adolescente e mentiroso. Por não lembrar e sentir algo quando pensava em sua falecida mulher. Pelo amor que desperdiçou esperando seus dois gatos voltarem da rua. Pela herança de sapatos que deixou para o tio mal da família, por ser este o único que calça o mesmo número. Por ter tomado veneno e não ter morrido quando era bebê. E por fim, por morrer e não ver meu futuro filho crescer e se tornar o bom homem que guiará a família.
Usando meus termos, encontrei escrito isso ao lado do corpo de meu avô. O topo dos dez dedos da mão estavam cortados. E eu não sei como ele conseguiu fazê-lo. Apenas sei que o décimo primeiro golpe foi no coração. A tesoura ainda está lá. Eu deixei-o descansar no sótão. Ele merecia.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A cor tá falha

De tons envelhecidos, a arte de Glória vinha do que não se podia descrever. Abstração pura, contida num pote de dimensões surreais, na sua grande perda de tempo. Alguns diziam que ela pintava seus sentimentos. Cada cor, um nome. Intensidade identificava apenas aparência. Ela era mesmo contagiante, para muitos.
De sua barreira, sua barreira em preto e branco, ninguém a atingia. Monocromático eram seus movimentos, colorido eram seus toques. Como o toque, distorcido, de Rei Midas em suas mãos, algo nela a tornava um ser romântico. Idealizada.
Presente de corpo e alma com quem fosse falar com ela. Mas um ar "cool" a preenchia. Um menosprezo delicado, de tons vívidos. Ela me disse uma vez que era seu lado azul celeste perdido. Daqueles que você vê por alguns segundos e tem a certeza que nunca mais verá. Como uma cena que jamais se repetirá. Aquele quarto de segundo em que é repassado nos sonhos dos maiores pensadores.
Tenho certeza que a mais profunda admiração partia de mim, mas nunca foi além disso, e era pra não ter sido. Numa dessas conversas de meio de rua, no começo da semana em que ela estava perturbada com contas, me perguntou algo que eu, na reação mais besta - quando se fala "é, isso mesmo" para alguma pergunta que não se entende, não se ouve ou que se quer escutar de novo por prazer - fiquei sem reação logo depois de despedirmos.
Meu rosto preto e branco brilhou depois que nós caminhávamos em direções opostas.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Aula, boçal

- Pensemos numa história que pareça que se construa sozinha, não no sentido acadêmico da coisa em que não exista autor ou algo do tipo. A idéia é tentar construir uma história de uma relação que necessariamente não seja de pessoas, mas que sim, sejam apenas duas. Com frases de efeito que funcionem e não sejam jogadas ou pra encher espaço, ou pra dar uma suposta profundidade, que no fundo (olhe o trocadilho), é raso. Pra isso, primeiro precisamos de uma boa trilha sonora, evidentemente, boa para o gosto de quem escreve a história. Ninguém vai saber o que o cara ouviu quando escreveu AQUELA frase foda, então anotar a música é perda de tempo. A partir daí, a história vai se desenhar ao sabor da música, e é óbvio que isso é absurdamente ridículo, mas muita gente sabe o que eu quero dizer. Se não souber, não tem problema. O que queremos de fato é soarmos engraçados e mas ao mesmo tempo profundos. Cabe ressaltar aquela velha dialética do ator cômico que quer ser levado a sério, mas nunca consegue. E quando consegue, as pessoas querem que ele seja apenas o ator cômico. E isso está atrelada com a expectativa que as pessoas têm das outras pessoas. A palavra de ordem é exatamente essa: ordem. Expectativa alcançada é ordem respeitada. Obviedade seja respeitada, não é pra isso que estamos aqui.

Barulho de lápis batendo em cadernos.

- Vejamos, você, fale!

- Eu, porque tem que ser eu sempre, professor?

- A senhorita sabe a resposta.

- Ok, ok. Tá, é pra falar a trilha sonora que eu escolheria?

- Não, o que foi que eu disse?

- Ai, ai. Calma então.

- Ande logo. Feche os olhos e começe a me desenhar uma história em 10 segundos.

- Será que eu consigo? Ela se perguntou em baixo tom.

Dez segundos se passaram. Tempo suficiente para o professor coçar arduamente sua barba grossa e exigir uma história.

- Como é? Vamos?

- Certo, eu vejo...

- Você vê? Drogas só são permitidas no intervalo, senhorita.

Um burburinho começa atrás da senhorita.

- Duas crianças está brincando no meio de uma aula. O professor vê e dá um sermão. Ele diz: "Muito bem, qual é o sermão que querem levar hoje, crianças? O de que seus pais estão gastando dinheiro pra vocês estudarem e não brincar? Não? Que tal então a de que..." Então o sinal do recreio bate.

O sinal para o intervalo bate e a sala olha assustada para a senhorita.

- Outro "Mais estranho que a ficção" senhorita?

E antes que pudesse responder, a sala começa a se esvaziar e ela some no mar de alunos apressados.

- Na próxima aula, eu trago um cadeado pra porta - resmungou o professor.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Hoje eu vou sair

Talvez eu procure algo realmente sem sentido, que na verdade só crio para estar atrás de algo. De tanto procurar, às vezes acabo encontrando, fruto da incerteza. E isso me atinge da pior maneira, como soco no estômago ou simplesmente dor certeira. Traçado o roteiro, após doses cavalares do encontro, bato a porta que me separa do ambiente feito de quatro paredes e do céu. Peço perdão pelo mau funcionamento de meu corpo a esmo e encontro uma cachaça na porta de casa. Segundos antes de segurar a garrafa brilhante, alguém a pega rapidamente:

- Achou que eu tinha esquecido do nosso dia?

Helena antecipou a noite que iríamos ter. Ela sabia que minha teimosia a faria gastar algumas horas pra me convencer. E eu não a queria agora, a garrafa já bastava. Teimei e acreditava na minha posição. Socaria a cara de Helena quantas vezes fossem necessárias para conseguir tomar aquela cachaça. A deriva, talvez encontrasse algo que fugiria do encontro que tive dentro de casa. Insaciável é Helena, idealizadora de futuros falsos, preocupada em fazer sempre o bem, principalmente para mim. E o que há de se fazer? Do outro lado da mesma moeda, insisto em procurar buracos.

- Hoje não dá. Quero sair por aí, talvez te encontrar!

- Querido, eu estou aqui...

- Sempre querendo me entender, hein Helena.

- Tá tudo bem?

- Sempre está, Helena, sempre está.

Se não encontro, tento cavá-los. Ela nunca entendeu, apesar de fingir querer fazê-lo.

- Até amanhã!

- Mas a gente nem começou. Vamos, me dê uma chance, a noite vai ser boa aqui...

- Com certeza vai ser...tchau!

- Querido! Volta aqui!

É inevitável que ela não entenda e por isso eu fujo. Pego a cachaça e saio correndo até o próximo quarteirão, pois a partir desse ponto Helena não tem mais poder. A procura é por algo metafísico, e é evidente minha preocupação em comê-lo cru, em estado puro, na escuridão que só a solidão pode proporcionar. E a diferença entre procura mental e procura física reside apenas no movimento que cada uma faz em seu eixo, egoísmo intelectual e apreço pelas aparências. Enquanto meu cérebro insiste em dar voltas, meus pés caminham para alguma direção que não tem fim.

Meu passo diminui com o passar dos quarteirões, as luzes seguindo um padrão de posicionamento certeiro e o peso de meus pensamentos afunda-me na calçada. Qual é o valor com que encaro os efeitos causados pela minha âncora mental?
Meus olhos gostam de correr o risco. Meus músculos não. Minha visão fotografa um casal seminu perto da entrada de uma entrada sem saída, próxima de uma boate perto de casa. Acredito que o sexo foi a única coisa que sobrou para fazerem, já que para eles trocar algumas frases, ou até poucas palavras seria inconveniente para ambos. Ele supõe que ela cansou de ouvir, e ela não agüenta mais não escutar nada dele, e por isso ela aceita o sexo como único maneira de fazê-lo falar, nem que seja por gemidos inconscientes. Tudo é negociável quando não se negocia.

Logo um bar surge, perto da boate, que naquele momento não ficava mais perto de casa. E eu culpo a garrafa. Carlos, acompanhado de mais uns amigos, me chama para uns drinques perto da porta de entrada do bar. Educadamente, com a gravata toda amarrotada e a camisa suada, exige que eu sente com seus amigos. Penso longos segundos. Faça um longo discurso para quem quiser ouvir e decido sentar e ficar. Já estava cansado demais pra continuar divagando.

E acredito que Helena ainda esteja me esperando na porta de casa. É sempre bom ter um porto seguro, onde minha âncora não sofra retaliações. Afinal, Helena só quer me entender.

sábado, 13 de novembro de 2010

O peso do ar

Cinco suspiros separam-na da convenção. Respiração profunda, assegurada pela massa homogênea e invisível, o ar. Combustível coeso para o começo do fim da convenção. O ar é o único elemento que divide o comportamento padrão do comportamento dito anormal. A passagem: aberta pelos personagens sensíveis da História.
Seguidos de cinco suspiros, ela não enxergava o mundo. Através do ar, o mundo se apresentava à ela, revelando suas conexões, seu funcionamento, suas falhas. Ela então traçava retas, planos e roteiros à se cumprir, porém não conseguia realizá-los. O comportamento anormal exige planejamento, enquanto a normalidade clama por ações.
Os humanos vivem como animais, respondendo a estímulos em segundos, desprovidos de consciência, presos ao presente, consumidos e consumindo. Ela os inveja, pois sabe que a alienação comum é a salvação dos anormais sendo que a insanidade salva a alma dos normais. Rodeado por seus amigos, ela sofre rejeições invisíveis.
Ao seguir combatendo sua anormalidade, ela começa a perder o tato social normal. Embates seculares dividem os solitários dos verdadeiros revolucionários, aqueles que militam contra o comportamento padrão, destinados a serem abocanhados pelo rótulo de loucos. A moça transita entre as duas versões do mundo: aquele se entrega a ela e aquele que se impõe, e está ciente de sua condição miserável.
Socialmente, ela deveria estar brilhando, capaz de operar em dois códigos diferentes, dados/criados pela História, mas percebe o dano real que isso pode causar. Relações óbvias que se estendem como um tapete, um carpete assentado pelo peso do tempo, soam como a morte.
Ela anda pelas ruas com seu namorado. Não dão as mãos. Não há troca de olhares. Ela sorri para o nada e insiste em andar de cabeça baixa, observando o que há a sua volta, de modo a não dirigir seu olhar para o namorado.
Então é nesse momento que ela suspira. Cinco vezes. O ar a leva para o outro lado. E a insanidade já perdeu a graça.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Receita alheia

Mário estende a mão para Bruno:
- Talvez esperamos demais, sentados com os pés balançando.
- A mente tranqüila e o corpo inquieto, né? Tá querendo o quê? – questiona Bruno.
- Me passa logo essa pá, tem que ser rápido – exige Mário.
- Calma, dá tempo.
- Duvido muito, ainda mais se continuar desse jeito. Anda logo, a pá.
- Toma então.
Bruno pega a pá e acerta o rosto deMário. O fraco desenho de sangue em linha reta se forma. As gotas lentamente preenchem o pequeno sulco feito na terra pelas mãos de Mário. Seria um jardim. Bruno vê Mário deitar-se no chão com as mãos no rosto. Os vizinhos devem se conhecer a uma semana. Serão grandes amigos.
Sábado de manhã, as esposas trocam receitas. Susana, esposa de Bruno, vê o acidente pela janela da cozinha de Patrícia, mulher de Mário. Molho de tomate humano para o almoço, a terra se alimenta.
O livro de receitas de Susana cai no chão.
- Meu Deus, Bruno, o que você fez? – Susana corre para a varanda.
Bruno ajuda Mário a se levantar. Patrícia observa o movimento de Susana e a segue num ato involuntário.
- Seu idiota – Mário soca Bruno – sabe a diferença entre me passar a pá e jogar ela em cima da minha cara?
Ambos caem na terra. Sangue, socos, roupas sujas. Homens na terra, feminina platéia.
Há mais ou menos uma semana, Mário, psicólogo, e Patrícia, advogada, se mudaram para o bairro nobre de Veneza. Casas separadas por pequenas cercas, estilo americano. Norte-americano. Dois carros na garagem, filho recém-nascido, condomínio fechado, classe média alta. Eles procuravam tranqüilidade. Bem, talvez.
Bruno não gostava dos antigos vizinhos e Susana gostava de dizer, mesmo que não assumisse:
- Se você não tivesse arrumado aquela confusão com a Marta, ela e o Vítor ainda morariam aqui.
- Já disse que eu não fiz nada demais – era o que Bruno repetia.
Marta era, de fato, meio descontrolada. Um mês antes de se mudar, ela invadiu o jardim da frente dos vizinhos no meio da noite:
- Queria ver se era mesmo grama natural, querido.
Sua motivação, incomum, compatível com sua rotina de rolar na porta de sua casa com um maio de ginástica antes de buscar o jornal matinal para seu marido. Machismos à parte, Marta poderia ser um cachorro. Talvez Mário pudesse explicar as particularidades da antiga vizinha, comportamento animal motivado pela grama, natureza?
Na plenitude de suas faculdades mentais, Susana se deliciava com a possibilidade de Bruno ter encantando Marta de alguma forma, corrompido-a. Afinal, ele era aposentado e, aos olhos da mulher, jovem demais para estar, digamos, desocupado aos quarenta anos. Nem Bruno saberia responder o porquê da aposentaria precoce. Eu mesmo não sei com o quê ele trabalhava. E Susana apenas sabia que a palavra “exército” era constante nas conversas com seu marido na época em que ele era integrante da população economicamente ativa do país.
Os casais vizinhos jantavam juntos uma vez por semana, às vezes sem a presença de “Vítor, o misterioso”. Marta e Susana travavam uma guerra culinária não-declarada: quem preparava os melhores pratos? Susana sabia que suas secretas encomendas ao chef local eram definitivamente melhores que o meticuloso cardápio que Marta planejava com notável perfeição.
- Esse filé mignon está maravilhoso, Marta.
- É, me esforcei muito dessa vez, Susana.
- Mais? Cuidado com a pressão, querida.
Nesse dia indefinido de jantar na casa de Marta e Vítor, Bruno notou a tensão culinária. Não queria comentar nada com a esposa. Porém quando voltaram para casa o marido, motivado pelas cinco taças de vinho que tomara com voracidade, disse à esposa:
- Essa briga de vocês tá ficando feia hein?
- Briga, querido? Que briga?
- Não precisa fingir, te conheço mulher.
- Ah, só estou testando ela. Quero ver se ela vai perceber que vai ser meio difícil ela ganhar do nosso chefe secreto.
Insira sua risada maléfica aqui.
- Vai com calma, meu bem. Agora vem cá.
O casal foi pra cama. Sexo marcado no cronômetro, treinamento militar.
“O que posso fazer?” pensou Susana quando notou que Bruno poderia perder a luta contra Mário. O rosto do marido já estava ficando inchado. Sangrando, Mário grunhia.
Passada uma semana do jantar, Bruno observou Susana ao telefone fazendo o pedido do tradicional jantar dos casais. Segundo Marta, Vítor havia confirmado presença. À noite, o primeiro casal recebe o segundo. Bruno se ofereceu para cuidar do forno enquanto Susana recebia Marta e Vítor. Depois de muita insistência, ele conseguiu convencer a mulher a deixá-lo servir a comida. Bruno recheou todos os pratos com pimenta.
Vítor ficou maravilhado com a ardência, Bruno comeu devagar. Marta não conseguiu comer. Susana desconfia do marido:
- Querido, o que aconteceu na cozinha?
- Não sei. Apenas servi a comida. Tem algo de errado?
- Não usei pimenta nesse molho de tomate.
- Tudo bem, Susana. Tem dias que a gente erra a mão, – comenta Marta, triunfante. Ela não consegue fingir seu sorriso – dá pra comer.
Ao final do jantar, Vítor esboçou satisfação com as mãos na barriga. Marta, com o prato quase cheio, disse que precisava ir. Todos se despedem, a porta de fecha. Susana se vira para Bruno:
- O que diabos o senhor fez na cozinha antes servir o jantar?!
- Um teste, querida. Deu certo.
- Deu certo né? Viu o que você fez? A Marta tá achando que ganhou.
- Ah, Susana, você tem coisa melhor pra fazer.
Susana suspirou como se concordasse. No dia seguinte Vítor e Marta se mudaram sem avisar. Talvez ela tenha mesmo pensado que ganhou a guerra e, por isso, decidiu ir embora para conservar essa sensação. Foi Bruno quem se sentiu vitorioso. Susana decidiu não encomendar mais nada do chef.
- Chega, vocês dois! Chega! – esbraveja Patrícia.
Assustados, Bruno e Mário param de se espancar.
- Foi ele quem começou, amor.
- Não quero saber, Mário. Vai pro chuveiro agora.
Bruno se levanta e pede desculpas a Mário pela palhaçada. Eles apertam as mãos.
- Querido, viu como a Patrícia manda no Mário?
- É, fiquei assustou.
- Vou começar a fazer isso contigo agora, amor. Que acha?
- Acho que tá precisando de uma pimenta pra acordar, amor.
Susana ri. Bruno, ensangüentado e sujo de terra, dá a mão à sua mulher. Eles rumam em direção a casa deles. Bruno comenta:
- E tudo isso só por causa de um jardim. Eu nem queria acertar o Mário dessa vez.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A prosaica

Rosana planejava viver fora de seu corpo. Acordou um dia, pensou em se enxergar por cima, e se viu fora do corpo. E a partir daí não conseguia fazer mais nada. Não comia, não piscava, não virava o rosto, não se tocava, não respirava, não precisava. Exagerada, fazia muito caso de viver fora do corpo e queria contar a novidade pra cachorra da vizinha do apartamento 210. Tentou comandar o corpo de cima, como marionete, com os dedos fantasmagóricos puxando fios invisíveis, mas não deu certo. Desistiu de tentar comandar o corpo e voltou para seu lugar de origem. Depois disso, ela voltou pra cama.

Ela não acreditava em espiritismo.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Encontro frugal

Uma escada vertical, levemente inclinada, garante movimento uniforme para cima. O último degrau é comido, quase junto com meu pé. Pulo e caio no chão, impedindo a passagem daqueles que estão atrás de mim. Acredito que se fosse uma criança não escutaria "Bacaca, sai da frente!". A compaixão moveria as mulheres com olhos marejados, fazendo com que me ajudassem a levantar. "Onde tá sua mãe?". Eu responderia "Não quer ser a minha?". Pena que não sou mais criança. E mesmo assim, incesto não é palavra de ordem por aqui.
Levanto. Passo a mão na minha camisa, limpando-a de uma sujeira que não vejo. Continuo o meu trajeto, ao som de risadas secas. Aida me espera no praça de alimentação, de olhos baixos, como se me procurasse por debaixo das mesas. Se fosse criança, com certeza ela não seria minha mãe. De cabelos levemente escuros, determinada e excessivamente independente, sua personalidade não poderia ser mais constrante à de minha mãe biológica. De qualquer modo, a beleza é similar. E por mais edipiano que seja, o amor torna-se dividual quando penso nas duas. Dividual pois amor dividido não é mais a mesma coisa, a natureza muda. O ar se torna água. E me afogo. Bem, não hoje. Dicionários de livrarias, lendo termos a esmo.
Encosto as mãos no ombro de Aida e ela finalmente olha pra cima, procurando meus olhos.
Sua procura é elíptica. O duplo eixo, pupilas. Ela sorri e volta a olhar para a mesa. Choraria como criança machucada. Se ainda fosse uma. Sendo supostamente adulto, olho para os lados. Comprovo que ninguém viu a cena e sento na cadeira mais próxima.
- O que foi hoje, Aida? Quer terminar, está grávida ou quer casar?
- Ai, não é nada disso querido. Mas a pergunta foi ótima!
É, ela sempre foi assim, descolada.

Caso comum de uma vítima mergulhada em ansiedade destrutiva: o narrador nasceu, cresceu e viveu a juventude muito bem. Boa família, nenhum amigo, três namoradas. Conheceu o sexo aos 16, nas velhas casas do prazer pago. Beijou uma conhecida aos 14. Oportunidade aproveitada, de fato.

Sentado de cócoras, debaixo do chuveiro. Sem roupa, evidente. A água pinga sobre meu corpo de frigideira. Lanço-me sobre outro cenário . A respiração rápida, os olhos mirando o chão, presente no futuro, cogitando os possíveis desfechos na latente quebra da rotina. Insisto em ficar debaixo da água até a fumaça esmorecer. Aida bate na porta, me chama. Eu gemo uma resposta. Quase vomito, olho pra cima. Levanto-me, desligo o chuveiro e olho fixadamente para o ralo com um olho fechado. Haja foco. Espero que o tempo me seque. Minutos depois, saio do banheiro. Vou para o quarto enrolado numa toalha. Estou fechado a porta do banheiro.
- Porque a demora no banho?
Olho em suas pupilas delgadas.
- É o calor.
Ela se volta para o corredor e resmunga algo para as paredes. Fecho a porta do quarto e a tranco. Me jogo na cama, com a toalha. Fecho os olhos e respiro profundamente. Escuto passos pesados, Aida correu.
No reino das vontades, beijar Aida aquele dia no shopping seria o clímax. Tremi com a possibilidade, pois o beijo aconteceria três dias atrás, antes da fatídica conversa na praça de alimentação. Não consigo mais encarar Aida, mas finjo suportar sua presença quando meus olhos encontravam-se com o dela. Apesar de meu corpo contrariar meu rosto, suportava pelo bem que ela ainda fazia, não mais frugal. Desejo que Aida só exista como idéia a partir de hoje.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Vice, versa, vice.

As duas horas da madrugada de uma sexta-feira, Isabella escuta o som de um trem. Deitada em sua cama, de olhos fechados, imagina um acidente. O som crescente, o descarrilar, a provável explosão e o inevitável estrago. A menina se levanta, vai para a cozinha. Toma um copo d´agua e senta na mesa, encarando o relógio na parede que faz um tic-tac contido. Lentamente, Isabella se aproxima do contador, pega-o e arremesa na parede mais longe. Ela então desperta.

As duas horas da madrugada de uma sexta-feira, Jarbas observa, pela sacada, sua vizinha tomar banho por uma fresta qualquer. Imagina que tenha chegado de uma balada genérica e foi tirar o cheiro de cigarro ou de vômito seu ou de uma amiga qualquer. Provavelmente sem sono, a vizinha se recusara a dormir fedida. Jarbas, como qualquer bom moço, respeita a privacidade da vizinha observando-a com apenas um dos olhos abertos. O outro concentra-se em imaginá-la ao seu lado, dando um oi tímido e em seguida um beijo demorado e molhado. De súbito, um som surdo provindo de outro apartamento faz Jarbas piscar compulsivamente. Isabella então dorme profundamente, revirando os olhos, protegidos pelas pálpebras.

Carta

A saia passada, cortando o ar mais rarefeito que eu já vi. Seus passos marcados no chão, decididos, pareciam oferecer resistência ao diálogo. A sequer uma sílaba.
Mas ela estava muito longe pra esboçar alguma reação além daquela que estava representando. Caminhava para seu destino, algum lugar aconchegante, como uma parede macia receptiva. Aos poucos presentes no caminho demarcado por argamassa, restavam-lhe olhar para o céu, as nuvens ventadas, ou o chão, as pernas calejadas.
Eu sussurrei no escuro:
- É assim mesmo. É isso e nada mais...passado o tempo de reconhecimento da área, o mapeamento das reações químicas que teu rosto me proporciona. Longe de mim querer um olhar assim...
Um estranhamento na espinha, respiração dificultada e as mãos balançando para não demonstrar o nervosismo:
- É realmente uma palhaçada. sabes da tua condição e mesmo assim não se entrega. É uma fraca desgraçada. Queres um dinheirinho? É casual, considere como se eu tivesse te pagando uma cerveja. Vai, vai...
A maioria diria que a coisa não é como tal apresentada. Os balbucios impedem a ação esperada do corpo. Dois atos, sem consequencias. Uma mão do lado, a outra em baixo. A parede macia, meu deus! Seria uma noite.
Uma coisa realmente significativa, que representava uma vivência completa. Por uma noite, uma única respiração.
- Aqui se faz, aqui se mata. Queres mais algo? Nada vai vazar daqui.
Prontamente ela responde depois de 10 minutos de greve de silêncio:
- Não mete essa!

sábado, 18 de setembro de 2010

Plano infalível

Eu falsificarei Deus e irei comandar o que estiver ao meu alcance. Por razões que só a Natureza explica, criarei 10 personagens. Dez seres atuantes. Cada qual a seu modo, particular na sua forma e estética. Principalmente na forma. Embalagens, plásticos de faces.
A força nasce e o plástico tentará possuir o esôfago. Isso nunca irá acontecer, mas a força reside na sensação. Um número suficente de sufocantes aparentes. Nada mal pra se começar uma revolução. Mas não é disso que se trata a criação, dos putos, dos flagelados, dos martírios, das felicidades, ah!, do líquido. Monta-se o cenário, cor vinho chapada. Curvas marrons, pôr do sol duplo. Como um bom Deus, sóis das cores básicas, cor de burro-quando-foge e queijo-fondue. (Eu não iria colocar um sol com cara de bebê-Teletubbies. Se bem que, ok, esquece...)
Pois bem, coloca-se os dez em ação, todos absortos em seus monólogos, despreocupados com os outros presentes. A pláteia faz um único monólogo virtual, pensante, intelectual. Abstrái-se o susto inical e tenta-se explicar o decágolo(faz-se de conta que isto significa o conjunto de dez monólogos, mesmo lembrando algo que tenha a ver com gola...). O torto da ação pontua a concentração do público pelo que é dito e não pela intensidade do que se fala. É um paradoxo comum e explorado por alguns(desculpa por não saber o número é fatal). Pra facilitar, as dez personalidades do mundo são nomeadas. As faces plastificadas são de cores diferentes. Os elogios são os mesmos, os defeitos originais. A matéria surge do nada, o plástico se recicla, a originalida se mastiga, os orgãos se consomem. Sem ensaio, é necessário o improviso. Num dado momento, as falas irão de cruzar. Pularão uma em cima da outra, construindo um amontado de expressões válidas para a deconstrução do mundo quase concebido. Gostaria que a platéia sumisse ddepois disso? Tudo bem, imagine assim. Não é a única escolha, mas para facilidade de narração seja a mais adequada e provavelmente a mais usada.
Esqueci-me do céu por uns segundos. A cor dele? Acredito que seria cinza esbranquiçado, constraste ideal para a terra banhada pelas cores perfeitas. Por razões que só a História explica, alguns personagens começam a destruir o cenário ao seu alcance, outros choram, e alguns poucos atuam como criadores. O restante prima por sua imaginação...
Eu sou falseador, esqueceu? Com defeitos originais. Nada mal para quem quer começar uma revolução.

Preparação

Dos mais felizes, provavelmente serei o mais atordoado. O mais fora de si. Revirando os olhos até que girem em todos os ângulos, esperando que as córneas se desgrudem. É a verdadeira alucinação dos desajeitados. Em tons graves de gritos agudos, uma harmonia é construída em porcelana fina e ostensiva.
Da cama afundada, o suor inunda os olhos, fazendo-se lágrimas salgadas e quentes. Abri o sorriso mais desajeitado dos felizes, cantando no silêncio do escuro a música mais celebração do momento. Socando o ar e fazendo gestos. Os tímpanos pulando com o som da caixa da bateria. Os vocais melódicos, transbordando um sentimentalismo sutil. O mundo depois da janela explodiu. Atestando a singularidade da composição, vibro com mais uma descoberta musical. Um mundo virtual ergue-se de novo, preparado pra engolir os aptos a mexer os músculos do rosto, localizados abaixo do nariz. Os olhos fechados, as córneas calmas, o silêncio flutuante. Mais simples que o ar. Mais simples que pular bueiros. Bem mais difícil que aprender a nadar em piscina de bolinhas. O ato de flutuar traz consigo uma necessidade de abstração completa. Ou seja, é necessário ver o escuro com os olhos fechados. O mais alto grau de abstração dos felizes. Desloco e relaxo a pressão que as costelas fazem na minha coluna levemente torta. Enfim a respiração toma um ritmo automático e os olhos entram em greve. O cérebro não pára, porém começa a caminhar para o mais inconsciente e obscuro dos lados.
O silêncio, nesse caso, é a prova de explosões químicas.

Seja bem vindo ao nosso restaurante, aqui está o cardápio

Provavelmente desisto de seguir a tradição simplesmente porque não consigo. Sim, ao calor do momento não posso afirmar que seja capaz de fazer qualquer coisa agora por ela. E a culpa falsa se esconde nesse copo de vinho.
Um suspiro ecoa nas imediações de meus tímpanos e exige que eu o faça. Indeciso, com os olhos congelados voltados para baixo, não consigo me movimentar e a dor começa a latejar. O universo agora serve o prato principal. Não poderia necessariamente ser diferente, assim como essa frase não deveria ser interpretada. Pois já existem rios de lamentações suficientes para servir os olhos do mundo. E é nesse momento que dou uma puxada no canto direito da boca. É o riso contido, o prato que sempre é jogado no lixo no final de todas as noites.
Já esse restaurante de nome família insiste em ajudar a minha filha de modos que julgo errado. E eu acredito que eu seja de outra natureza. Necessariamente não superior, simplesmente diferente.
Talvez ela seja a única que tenha me puxado, sendo eu um ser consciente da minha (in)capacidade de perceber as coisas como elas são. Não poderia ser mais desajustado. E são poucos os que possuem a incrível capacidade, e talvez benção, de conseguir me machucar. A sobremesa sempre será o tapa da sua realidade, leitor, a que você vive. Imagine que eu seja um tipo especial e que você acredita em minhas palavras.
Dizem que minha filha precisa de uma injeção e cabe a eu dar-lhe esse golpe racional. A hesitação explica minha paralisia, a identificação é evidente. Doses cavalares de placebo e alguns picos de felicidade industrial. Seria um procedimento simples, como preparar uma salada. Lavar, temperar, comer. Dar um banho, entupi-la de remédios e fazê-la acreditar que está vivendo uma vida. Essa seria a entrada.
O início na vida do restaurante.