quarta-feira, 25 de julho de 2012

Bar hidratante

Atendo meus clientes noite após noite. Ofereço o que tenho, na medida em que desejam. Eventualmente aumento a dose quando não estão olhando. Meio copo se torna copo cheio. Não sou lá muito mesquinho.
Não há pedidos sofisticados, apesar de que, vez ou outra, algum cliente pede um drink que nunca ouvi falar. Caso tivesse um smartphone, resolveria o problema em minutos ou segundos, se o tal 3G fosse meu amigo. Como não é o caso, improviso. Fogo paulista se torna um parente açucarado do rabo de galo.
Observo as manias, os trejeitos, os comportamentos dos clientes. Bigodudo coça seu bigode de dentro pra fora. Comecei a desenhar padrões, desenhos, pontos de vista. Quem bebe demais tomba pro lado direito, cabeça na direção do banheiro masculino. 
Como raciocionam, como se preocupam em não entregar seu estado ébrio a desconhecidos. Os passos tortos se tornam passos de bolero que tocam incensantemente nas caixas de som do bar, da rádio mais alternativa dos anos 90.
Eu, como prestador de serviços, tenho total acesso aos "meios de produção" e eles ficam à mercê da minha "força de trabalho". Eu não sei de muita coisa.
Destinado a alimentar o microcosmo que nada mais é do que a síntese do mundo que conhecemos fora do bar, acordei tarde naquela sexta-feira, o prenúncio da preguiça do final de semana. Quase cinco anos como barman mecanizaram meus atos. Rotina pré-programada até o momento em que sirvo o primeiro copo. Ou até mesmo antes. Lugar no qual tudo era possível, se permitido. 
O bar simboliza o meu mundo, as pessoas ao meu redor. O tato do vidro do copo à máscara social prestes a quebrar, rosto a ser revelado, impulsos a serem libertados. Eu controlo seus atos, cliente. E você ainda me paga por isso.
Naquela sexta, um garoto adentrou o bar, antes das 23 horas. Alguns velhos e cinco ou seis adolescentes acompanhavam a cena. Havia um burburinho. Os velhos comentavam sobre Caetano Veloso e a ditadura. Eu chamaria de clichê se tivesse conhecimento de causa. Os jovens conversavam sobre seus Iphones e aplicativos. E eu com meus 30 e poucos anos ignorava-os, lavando a pouca louça presente, a ouvir Brubeck no meu rádio portátil, como se habitasse os anos 60.
- Moço, quero um copo d'agua! - disse o garoto sob o risco de desafinar, no limiar da infância/adolescência.
Água?
O velho mais velho se calou diante das palavras joviais. Giovani, 70 anos, decidiu acompanhar minhas reações, como costumava fazer quando seu copo se apresentava vazio de gin. Ele nunca pedia por mais, pois acreditava que seu copo era carregado por intermediação divina. E eu era o mensageiro alcóolico e, pelo jeito, hidratante também. Servi um copo d'agua ao garoto e preenchi o copo de Giovani com seu líquido precioso. Dei-lhes as costas e voltei a lavar a louça. Segundos depois, escutei o copo vazio do garoto tocar o balcão. Imaginei que ele tenha me dado as costas e foi-se embora. E o Brubeck destruía no piano no meu FM.