domingo, 18 de maio de 2014

Agora e todos os dias

Somos todos inimigos a procura do oposto. E mais uma vaga havia surgido na linha de produção. Túlio sentiu seu lado direito tremer. Uma dor aguda, isolada e pontual, como se algum órgão estivesse sendo expulso pelo inimigo interno que agora carregava. Uma parte sua queria ir embora e Túlio não gostava nada da idéia, mesmo que o órgão em questão não fosse digno de nota ou lembrado com frequência. Seria um baço, uma vesícula ou qualquer órgão pouco falado nas aulas de biologia. 
A sete passos do hospital, Túlio, aos 25 anos, voltou sete anos da sua vida. Aos 18, Túlio era um qualquer no colégio particular. Um órgão qualquer, ao lado de seus inimigos, orquestrando um plano qualquer para depois das aulas. Uma viagem a piscina mais próxima, ao bar mais perto, ao shopping mais distante, ao filme mais comentado. Ao lado de seus inimigos, encostados no muro do segundo andar do colégio, Túlio observava a menina de laço vermelho no cabelo. E agora ele se perguntava porque uma criança aceitaria ir a escola daquele jeito, sendo conivente com o adereço que os pais escolheram para a filha naquele exato dia. Todo ser se sujeitaria as ações de seus próximos, numa cascata de imposições que fogem das vontades dos sujeitos afetados. Aquela criança não queria estar ali com aquele laço, pensou Túlio. E logo uma dor nas costas lhe acometeu, fruto do soco do inimigo mais próximo. A seis passos do hospital, Túlio cuspiu sangue.
Aos 19, Túlio estava deitado na cama. Relativamente confortável, culpava seu corpo que teimava em ignorar seu desejo de fugir dali. O estado de Túlio não fugia do comum. Os gânglios linfáticos, dizia o médico, estavam inchados como deveriam para alguém com caxumba. A única preocupação, mundana se considerada meses depois, dizia respeito a caxumba "descer" para as partes íntimas. Túlio, de olhos fechados e acompanhado da família, escutava as recomendações do médico sem atenção, mais preocupado em entender como havia pegado uma doença infantil. Isso representaria uma regressão na maturidade física e psicológica que cobiçava a tempos. E sua sexualidade não poderia ser violada no processo. As fotos do seu crescimento, tiradas com o passar dos anos, corroboravam para a teoria de quê Túlio era um comum que não pertencia aquele senso de comunidade familiar. Seria adotado por pais superprotetores e demasiadamente abastados. E uma pequena irmã postiça que acabara de puxar a agulha de soro da mão de Túlio. 
Um grito surdo de Túlio é sufocado por suas mãos. Lágrimas se formaram nos olhos dele, a dois passos do hospital. Aos 22 anos, Túlio saíra da casa dos pais supostamente não-biológicos e tomava sozinho sua primeira cerveja dentro do bar mais perto. A vista para a rua era plena. E vazia. Túlio estava comprometido com a idéia de iniciar uma família, ele e seu apartamento. O senso de pertencimento estava completo enquanto pensava com rigor como mobiliar seu apartamento com um dinheiro que ainda não tinha. Já na terceira cerveja, um Tomás apressado e desconhecido adentrara no bar e pedira uma cerveja de latinha. Túlio fez piada com a marca da cerveja. Sem convite, Tomás sentou à mesa ao lado de Túlio. Mais um inimigo havia sido feito. Horas depois estavam deitados no colchão de casal de Túlio, o único pertence do apartamento recém comprado pelos pais. Tomás e Túlio viveram como um só por alguns anos e a dor lancinante seguiu até os 25. Assim ela se apagou e formas futuras surgiram.
A um passo do hospital, Túlio interrompeu sua caminhada. O sangue, as lágrimas e a dor aguda, isolada e pontual, haviam desaparecido da forma como surgiram. Não havia mais porque olhar para trás, pois nada mais havia.