Somos todos inimigos a procura do oposto. E mais
uma vaga havia surgido na linha de produção. Túlio sentiu seu lado direito
tremer. Uma dor aguda, isolada e pontual, como se algum órgão estivesse sendo
expulso pelo inimigo interno que agora carregava. Uma parte sua queria ir
embora e Túlio não gostava nada da idéia, mesmo que o órgão em questão não
fosse digno de nota ou lembrado com frequência. Seria um baço, uma vesícula ou
qualquer órgão pouco falado nas aulas de biologia.
A sete passos do hospital, Túlio, aos 25 anos,
voltou sete anos da sua vida. Aos 18, Túlio era um qualquer no colégio
particular. Um órgão qualquer, ao lado de seus inimigos, orquestrando um plano
qualquer para depois das aulas. Uma viagem a piscina mais próxima, ao bar mais
perto, ao shopping mais distante, ao filme mais comentado. Ao lado de seus
inimigos, encostados no muro do segundo andar do colégio, Túlio observava a
menina de laço vermelho no cabelo. E agora ele se perguntava porque uma criança
aceitaria ir a escola daquele jeito, sendo conivente com o adereço que os pais
escolheram para a filha naquele exato dia. Todo ser se sujeitaria as ações de
seus próximos, numa cascata de imposições que fogem das vontades dos sujeitos
afetados. Aquela criança não queria estar ali com aquele laço, pensou Túlio. E
logo uma dor nas costas lhe acometeu, fruto do soco do inimigo mais próximo. A
seis passos do hospital, Túlio cuspiu sangue.
Aos 19, Túlio estava deitado na cama.
Relativamente confortável, culpava seu corpo que teimava em ignorar seu desejo
de fugir dali. O estado de Túlio não fugia do comum. Os gânglios linfáticos,
dizia o médico, estavam inchados como deveriam para alguém com caxumba. A única
preocupação, mundana se considerada meses depois, dizia respeito a caxumba
"descer" para as partes íntimas. Túlio, de olhos fechados e
acompanhado da família, escutava as recomendações do médico sem atenção, mais
preocupado em entender como havia pegado uma doença infantil. Isso representaria
uma regressão na maturidade física e psicológica que cobiçava a tempos. E sua
sexualidade não poderia ser violada no processo. As fotos do seu crescimento,
tiradas com o passar dos anos, corroboravam para a teoria de quê Túlio era um
comum que não pertencia aquele senso de comunidade familiar. Seria adotado por
pais superprotetores e demasiadamente abastados. E uma pequena irmã postiça que
acabara de puxar a agulha de soro da mão de Túlio.
Um grito surdo de Túlio é sufocado por suas
mãos. Lágrimas se formaram nos olhos dele, a dois passos do hospital. Aos 22
anos, Túlio saíra da casa dos pais supostamente não-biológicos e tomava sozinho
sua primeira cerveja dentro do bar mais perto. A vista para a rua era plena. E
vazia. Túlio estava comprometido com a idéia de iniciar uma família, ele e seu
apartamento. O senso de pertencimento estava completo enquanto pensava com
rigor como mobiliar seu apartamento com um dinheiro que ainda não tinha. Já na
terceira cerveja, um Tomás apressado e desconhecido adentrara no bar e pedira
uma cerveja de latinha. Túlio fez piada com a marca da cerveja. Sem convite,
Tomás sentou à mesa ao lado de Túlio. Mais um inimigo havia sido feito. Horas
depois estavam deitados no colchão de casal de Túlio, o único pertence do
apartamento recém comprado pelos pais. Tomás e Túlio viveram como um só por
alguns anos e a dor lancinante seguiu até os 25. Assim ela se apagou e formas
futuras surgiram.
A um passo do hospital, Túlio interrompeu sua
caminhada. O sangue, as lágrimas e a dor aguda, isolada e pontual, haviam
desaparecido da forma como surgiram. Não havia mais porque olhar para trás,
pois nada mais havia.