Pela
pequena janela oval, ele observa os pontos luminosos. Distantes, a quilômetros
de distância. Abaixo de seus pés, longe de sua imaginação. Em suas mãos repousa
um livro aberto na página 58. O dedo indicador da mão direita aponta o segundo
parágrafo, iluminado pelo ponto de luz acima da cabeça de Herbert:
"Diferente de mim e de tantos outros, Lorde Desmond esboça a mesma reação.
Ele não poderia negar que os céus irão se abrir novamente. Porém não
hoje." Herbert volta a ler.
À
frente de sua poltrona, um bebê grita e chora. Clama por atenção. Ao lado dele,
sua mãe logo o acolhe e o barulho se dissipa. Herbert toca sua testa. Uma
comissária, Heloísa, passa pelo corredor e pergunta à mãe se está tudo bem. Não
há resposta, porém Herbert tem a certeza que o bebê está vivo. A comissária
esboça seu sorriso plástico, satisfeita em ver na mãe algum sinal positivo,
imagina Herbert. Impossibilitado de vê-la, ele podia inferir da comissária o
reflexo do bem-estar. Ele mesmo fazia esse papel anos a fio. Servia à sua
família o melhor de si, o melhor dos bens.
Tendo
casado há 15 anos com Lorena e pai de dois filhos pré-adolescentes, Herbert não
media esforços para com os três. Aos 39 anos, está indo a mais um encontro de
negócios na capital paulista. É representante de vendas de uma empresa
farmacêutica. Ele, um homem considerado estável, bem sucedido, simpático,
amigável. Um boa-praça, convenhamos.
"Senhores
passageiros, passaremos por uma leve turbulência, queiram afivelar os seus
cintos de segurança, por gentileza." O avião começa a tremer. Ainda
no corredor, Heloísa perde o equilíbrio e cai na poltrona vazia ao lado da de
Herbert, sentado na asa. Ela acaba tocando em seu livro ao se sentar, desequilibrada. Revelando certa
apreensão, afivela o cinto.
O
avião balança e ela cerra os olhos. Herbert fecha seu livro, marcando com o
dedo a página 59.
-
Está tudo bem, senhorita?
-
Si-si-sim, senhor.
Não
há porque ressaltar que ela está nervosa, sua maquiagem está quase borrada
pelas lágrimas. Teria ela medo de turbulência? Seria
cômico. Herbert mantém o semblante relaxado. Imerso na zona de
conforto e concentração da leitura, recebe o chamado da realidade: alguém
não está calmo.
Não
por coincidência, esta foi a primeira palavra que seu pai usou para lhe
descrever. Já no berçário do hospital particular, dias após seu nascimento,
enquanto alguns bebês choravam e se inquietavam com a ideia de sair
da proteção oval de suas mães e tocar o novo mundo desprotegidos, Herbert
nada fazia. Estava ali, encarando aquela proteção, num misto de calmaria com
sonolência.
Desde
o rápido parto normal, Herbert se apresentou ao mundo dessa forma. Sua mãe
quase nada sentiu e talvez seja por isso que ele não tenha chorado quando lhe
cortaram o cordão umbilical. Não havia machucado sua mãe no processo e o mundo
não lhe parecia estranho.
A
mãe e o pai, ambos literatos, dedicaram parte de sua obra e vida a entender seu
filho, acontecimento nada planejado. Naturalmente, para eles, era mais fácil
decifrar a calma de Herbert pela distância das palavras do que pela rotina
familiar. Influenciado pelo meio, ainda criança devorava livros como se fossem
seu cereal matinal. E mesmo assim, seu semblante em nada mudava quando lia,
apesar da fome em viver a realidade da literatura. Nenhum franzir de olhos, nem
abertura de boca e, acima de tudo, piscadas leves, como se estivesse
compreendendo tudo o que lia. Sua babá poderia assegurar este fato, mantendo a
realidade organizada para a família e pra si mesma.
Mas
o que mais intrigava Herbert, já adolescente, eram os personagens criados por
seus pais. Um dia, fuçando no escritório da mãe, encontrou um livro jogado no
chão, "Complacente", e o levou a seu próprio escritório, sua cama.
Horas depois, sua mãe o flagrou lendo a obra e nada comentou, apesar da leve
apreensão com que fechou a porta do quarto do filho logo depois de perguntar o
que ele gostaria de jantar.
Seus
pais jamais contaram a ele que os protagonistas calmos eram várias faces do
mesmo prisma, o próprio filho. Depois do incidente, mãe e pai decidiram
alimentá-lo com suas obras-estudos. Assim a criação de Herbert se deu,
adotando camada por camada, características daquilo que leu e absorveu. O
orgulho dos pais, criado palavra por palavra, num processo um bocado
retroativo. Complacente e calmo.
-
Acalme-se, está tudo bem, senhorita. Logo passaremos alguns nuvens
e aterrissaremos.
-
Sim, senhor...é que, é o meu primeiro dia.
Herbert
segura com leveza a mão de Heloísa.
-
Não há porque sofrer no primeiro dia o conjunto de todo o resto.
Heloísa
abre os lábios lentamente e encara Herbert, absorta.
O
avião finalmente sai da zona de turbulência como um gesto divino. Abaixo das
nuvens, os pontos luminosos retornam. "Senhores passageiros, pouso
autorizado."
A
partir daqui, vinte minutos separam Herbert do solo de São Paulo. E ele não se
importa, independente do agradecimento fervoroso de Heloísa na saída da
aeronave.