segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Dia primeiro

Pela pequena janela oval, ele observa os pontos luminosos. Distantes, a quilômetros de distância. Abaixo de seus pés, longe de sua imaginação. Em suas mãos repousa um livro aberto na página 58. O dedo indicador da mão direita aponta o segundo parágrafo, iluminado pelo ponto de luz acima da cabeça de Herbert: "Diferente de mim e de tantos outros, Lorde Desmond esboça a mesma reação. Ele não poderia negar que os céus irão se abrir novamente. Porém não hoje." Herbert volta a ler. 
À frente de sua poltrona, um bebê grita e chora. Clama por atenção. Ao lado dele, sua mãe logo o acolhe e o barulho se dissipa. Herbert toca sua testa. Uma comissária, Heloísa, passa pelo corredor e pergunta à mãe se está tudo bem. Não há resposta, porém Herbert tem a certeza que o bebê está vivo. A comissária esboça seu sorriso plástico, satisfeita em ver na mãe algum sinal positivo, imagina Herbert. Impossibilitado de vê-la, ele podia inferir da comissária o reflexo do bem-estar. Ele mesmo fazia esse papel anos a fio. Servia à sua família o melhor de si, o melhor dos bens.
Tendo casado há 15 anos com Lorena e pai de dois filhos pré-adolescentes, Herbert não media esforços para com os três. Aos 39 anos, está indo a mais um encontro de negócios na capital paulista. É representante de vendas de uma empresa farmacêutica. Ele, um homem considerado estável, bem sucedido, simpático, amigável. Um boa-praça, convenhamos. 
 "Senhores passageiros, passaremos por uma leve turbulência, queiram afivelar os seus cintos de segurança, por gentileza." O avião começa a tremer. Ainda no corredor, Heloísa perde o equilíbrio e cai na poltrona vazia ao lado da de Herbert, sentado na asa. Ela acaba tocando em seu livro ao se sentar, desequilibrada. Revelando certa apreensão, afivela o cinto. 
O avião balança e ela cerra os olhos. Herbert fecha seu livro, marcando com o dedo a página 59.
- Está tudo bem, senhorita?
- Si-si-sim, senhor.
Não há porque ressaltar que ela está nervosa, sua maquiagem está quase borrada pelas lágrimas. Teria ela medo de turbulência? Seria cômico. Herbert mantém o semblante relaxado. Imerso na zona de conforto e  concentração da leitura, recebe o chamado da realidade: alguém não está calmo. 
Não por coincidência, esta foi a primeira palavra que seu pai usou para lhe descrever. Já no berçário do hospital particular, dias após seu nascimento, enquanto alguns bebês choravam e se inquietavam com a ideia de sair da proteção oval de suas mães e tocar o novo mundo desprotegidos, Herbert nada fazia. Estava ali, encarando aquela proteção, num misto de calmaria com sonolência.
Desde o rápido parto normal, Herbert se apresentou ao mundo dessa forma. Sua mãe quase nada sentiu e talvez seja por isso que ele não tenha chorado quando lhe cortaram o cordão umbilical. Não havia machucado sua mãe no processo e o mundo não lhe parecia estranho. 
A mãe e o pai, ambos literatos, dedicaram parte de sua obra e vida a entender seu filho, acontecimento nada planejado. Naturalmente, para eles, era mais fácil decifrar a calma de Herbert pela distância das palavras do que pela rotina familiar. Influenciado pelo meio, ainda criança devorava livros como se fossem seu cereal matinal. E mesmo assim, seu semblante em nada mudava quando lia, apesar da fome em viver a realidade da literatura. Nenhum franzir de olhos, nem abertura de boca e, acima de tudo, piscadas leves, como se estivesse compreendendo tudo o que lia. Sua babá poderia assegurar este fato, mantendo a realidade organizada para a família e pra si mesma.
Mas o que mais intrigava Herbert, já adolescente, eram os personagens criados por seus pais. Um dia, fuçando no escritório da mãe, encontrou um livro jogado no chão, "Complacente", e o levou a seu próprio escritório, sua cama. Horas depois, sua mãe o flagrou lendo a obra e nada comentou, apesar da leve apreensão com que fechou a porta do quarto do filho logo depois de perguntar o que ele gostaria de jantar.
Seus pais jamais contaram a ele que os protagonistas calmos eram várias faces do mesmo prisma, o próprio filho. Depois do incidente, mãe e pai decidiram alimentá-lo com suas obras-estudos. Assim a criação de Herbert se deu, adotando camada por camada, características daquilo que leu e absorveu. O orgulho dos pais, criado palavra por palavra, num processo um bocado retroativo. Complacente e calmo.
- Acalme-se, está tudo bem, senhorita. Logo passaremos alguns nuvens e aterrissaremos.
- Sim, senhor...é que, é o meu primeiro dia.
Herbert segura com leveza a mão de Heloísa. 
- Não há porque sofrer no primeiro dia o conjunto de todo o resto. 
Heloísa abre os lábios lentamente e encara Herbert, absorta.
O avião finalmente sai da zona de turbulência como um gesto divino. Abaixo das nuvens, os pontos luminosos retornam. "Senhores passageiros, pouso autorizado." 
A partir daqui, vinte minutos separam Herbert do solo de São Paulo. E ele não se importa, independente do agradecimento fervoroso de Heloísa na saída da aeronave. 

Um comentário:

  1. "- Não há porque sofrer no primeiro dia o conjunto de todo o resto." ---> vou levar essa pra vida.

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