sábado, 6 de dezembro de 2014

Por hora

Meus dedos dos pés estavam fugindo do cobertor. Era a única parte do corpo descoberta, minha posição favorita. Acordara com os primeiros raios do sol a pousarem sobre meus olhos úmidos. O corpo nu enrijecido contra o cobertor, os pelos dos braços arrepiados, a posição desleixada, torta e relapsa. Certamente era dia de semana, pois pensava na reunião a acontecer horas mais tarde. Tudo parecia conhecido agora, em que a rotina deixava de ser uma segurança, pois já era fé. Mas o conhecimento do usual era a ignorância velada da existência. E a fé era a cegueira voluntária.            
Optei ruminar tais certezas acompanhado de cereal regado com leite integral. Foi então que você saiu de seu quarto com aquelas olheiras profundas e me olhou com indiferença aceitável. Já se passaram 5 anos e você ainda insistia em meter a sua colher no meu cereal. No espelho do banheiro, havia ensaiado algumas vezes como deveria te dizer que parasse com a mania, porém depois de tanto tempo a mania virou rotina. Assim como seus olhos indiferentes. E pensar que a cada dia, meu sentimento mudava sem motivo aparente. Impraticável ser indiferente a ti.
Você comentava sobre a loucura da noite anterior enquanto eu fechava a porta para ir trabalhar baqueado. Olhar fixo a frente, embarcava no terceiro vagão do metrô. Subia a segunda escada rolante a direita focado nos meus pés. E de olhos fechados pegava o primeiro elevador para o décimo andar. A reunião demoraria uma hora, tempo suficiente para você preparar o almoço em casa que inevitavelmente renderia o jantar do mesmo dia e o almoço do próximo. Voltava a tempo de acompanhar a sua janta animada pela televisão. Suas risadas inconstantes eram sinal de bem estar, a ressaca foi curada com sucesso enquanto meu suor inundava o torso.
Difícil acreditar na sanidade dessa ressaca. A sua indiferença nasceu daí? Segunda-feira, o primeiro dia de sua programação, já ansioso por mais um final de semana. E eu observava o processo, cogitando pela primeira vez adaptar o seu modus operandi ao meu. Por hora, a possibilidade era excitante. Ser você.
Os nossos prazos díspares evidenciavam a distância. Almejava promoções, especializações e cursos interessantes para minha formação pessoal e profissional. Nesse ínterim, seu objetivo de travar diálogos e relacionamentos com pessoas desconhecidas, suprindo a necessidade de interação com aquilo que considerava importante dependendo do dia, batia o pé no meio da sala. Na rotina da ausência de expectativas, você dominava o tédio de olhos fechados. Trocamos algumas frases na sala antes de ir para a cozinha. Esquentei as sobras da geladeira. O microondas cantava sua música.
Com um sorriso torto, você me perguntou se iria dormir. O frio do cansaço começou pelos pés e possuiu o resto do corpo. Meus olhos tremeram. Deitado na cama, com os dedos dos pés descobertos, permitia sonhar com a possibilidade de viver sozinho, desenhando um futuro breve. Sem horários empresariais, sem fé, sem reuniões infindáveis, sem profissão, sem você.
No quarto ao lado, seus planos começavam a se encaminhar. Os locais, as possíveis pessoas, o álcool, os desenlaces necessários, a cegueira voluntária diante das responsabilidades tolas da vida. E então seus olhos marejavam ao encarar a parede que nos dividia. Após 5 anos, chegamos ao ponto sem retorno.

Não poderia mais conviver contigo se aceitasse que sou e sempre fui você. Por hora, seria o suficiente para destruir a indiferença. 

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