Meus dedos dos pés estavam fugindo do cobertor. Era a
única parte do corpo descoberta, minha posição favorita. Acordara com os
primeiros raios do sol a pousarem sobre meus olhos úmidos. O corpo nu
enrijecido contra o cobertor, os pelos dos braços arrepiados, a posição
desleixada, torta e relapsa. Certamente era dia de semana, pois pensava na
reunião a acontecer horas mais tarde. Tudo parecia conhecido agora, em que a
rotina deixava de ser uma segurança, pois já era fé. Mas o conhecimento do
usual era a ignorância velada da existência. E a fé era a cegueira voluntária.
Optei ruminar tais certezas acompanhado de cereal regado
com leite integral. Foi então que você saiu de seu quarto com aquelas olheiras
profundas e me olhou com indiferença aceitável. Já se passaram 5 anos e você
ainda insistia em meter a sua colher no meu cereal. No espelho do banheiro,
havia ensaiado algumas vezes como deveria te dizer que parasse com a mania,
porém depois de tanto tempo a mania virou rotina. Assim como seus olhos
indiferentes. E pensar que a cada dia, meu sentimento mudava sem motivo
aparente. Impraticável ser indiferente a ti.
Você comentava sobre a loucura da noite anterior
enquanto eu fechava a porta para ir trabalhar baqueado. Olhar fixo a frente,
embarcava no terceiro vagão do metrô. Subia a segunda escada rolante a direita
focado nos meus pés. E de olhos fechados pegava o primeiro elevador para o
décimo andar. A reunião demoraria uma hora, tempo suficiente para você preparar
o almoço em casa que inevitavelmente renderia o jantar do mesmo dia e o almoço
do próximo. Voltava a tempo de acompanhar a sua janta animada pela televisão.
Suas risadas inconstantes eram sinal de bem estar, a ressaca foi curada com
sucesso enquanto meu suor inundava o torso.
Difícil acreditar na sanidade dessa ressaca. A sua
indiferença nasceu daí? Segunda-feira, o primeiro dia de sua programação, já
ansioso por mais um final de semana. E eu observava o processo, cogitando pela
primeira vez adaptar o seu modus operandi ao meu. Por hora, a possibilidade era
excitante. Ser você.
Os nossos prazos díspares evidenciavam a distância.
Almejava promoções, especializações e cursos interessantes para minha formação
pessoal e profissional. Nesse ínterim, seu objetivo de travar diálogos e relacionamentos
com pessoas desconhecidas, suprindo a necessidade de interação com aquilo que
considerava importante dependendo do dia, batia o pé no meio da sala. Na rotina
da ausência de expectativas, você dominava o tédio de olhos fechados. Trocamos
algumas frases na sala antes de ir para a cozinha. Esquentei as sobras da
geladeira. O microondas cantava sua música.
Com um sorriso torto, você me perguntou se iria dormir.
O frio do cansaço começou pelos pés e possuiu o resto do corpo. Meus olhos
tremeram. Deitado na cama, com os dedos dos pés descobertos, permitia sonhar
com a possibilidade de viver sozinho, desenhando um futuro breve. Sem horários
empresariais, sem fé, sem reuniões infindáveis, sem profissão, sem você.
No quarto ao lado, seus planos começavam a se encaminhar.
Os locais, as possíveis pessoas, o álcool, os desenlaces necessários, a
cegueira voluntária diante das responsabilidades tolas da vida. E então seus
olhos marejavam ao encarar a parede que nos dividia. Após 5 anos, chegamos ao
ponto sem retorno.
Não poderia mais conviver contigo se aceitasse que sou e
sempre fui você. Por hora, seria o suficiente para destruir a indiferença.
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