Júlio acordou com o nariz travado. Sentiu
gosto de sangue nos lábios e desanimou com a perspectiva de acordar. Não havia
muita coisa para fazer. Era uma segunda-feira qualquer e, para quem não
trabalha, não há motivações extremamente fortes para sair da cama. Talvez se
animasse em tentar lembrar o que diabos aconteceu na noite anterior. Acordara
de calça jeans e camisa surrada. O vermelho da camisa se confundia com o sangue
que brotava lentamente do seu lábio inferior. Estava inchado, fruto de alguma
desventura ainda não recordada. Havia se acostumado com tal configuração, pois
naturalmente não era a primeira vez que isso tinha acontecido. Podia contar em
uma mão, 5 anos atrás sua missão havia começado.
Eram meretrizes, garçonetes, advogadas,
contadoras, relações públicas. Mulheres da vida e mulheres de respeito,
metaforizadas pela independência financeira e social. Júlio não acreditava em
feminismo, porém não era um machista nato. Seus dias de semana eram meio
nebulosos, imersos numa dormência misturada com malemolência e desenvoltura,
que nem mesmo ele conseguia acreditar. Seu fascínio emergia de seu estado
semi-consciente. Chegava em bares exóticos por volta das 8 horas da noite e
encarava sua rotina noturna com disciplina. Tomava de dois a quatro drinques,
nunca repetidos. Os garçons eram simpáticos e solícitos, admirados pelo pedidos
inusitados de Júlio. Ignorava cerveja valorizando destilados.
Suas supostas vítimas observavam vez ou outra o
modus operandi do rapaz, que pouco interagia com o ambiente na primeira hora de
permanência. Logo perdia o controle de seus atos e minutos depois estava
transando. Na casa dela, na casa dele. Violentamente, como se não houvesse
amanhã. Animais enroscados na luta mais mortal e íntima que alguém poderia
imaginar. Tudo exposto ali, na mesa da sala, no balcão da cozinha, no chão da
sala com a televisão ligada, embalados pelo jazz que tocava
alucinadamente no canal de música. Perdão a James Brown e Stevie Wonder, Júlio
tinha outras preferências. Quanto aos clichês sexuais, invente outros, caso
queira.
Júlio exalava um cheiro que descontrolava. Após
o segundo drinque, ele brincava com o copo, passando seu dedo indicador sobre a
borda vítrea em movimento circulares, puxando a engrenagem, o mecanismo da
atração, mais próximo de si. Seu encanto se confundia com seus cabelos negros e
lisos, escorridos, a esconder seus olhos. Ele gostava de encarar o chão. A
gravidade insistia em determinar como ele estaria exposto. A testa escondida,
os olhos presos pela franja, sua liberdade condicionada ao sabor da gravidade.
O copo que segurava costuma deslizar por sua mão lisa, sem calos. Na
adolescência, lá na época do segundo colegial, Júlio respondia por
"mão-furada". Os amigos adoravam gritar seu apelido durante a
educação física. Curioso é que fez somente uma cesta em toda sua época escolar:
Maria Helena. Ninguém nunca soube. Mas para Júlio, ele nunca mais poderia ser
"mão-furada". Machismo da parte dele.
Quanto a noite anterior, Júlio conseguiu lembrar
apenas daquela salto alto negro, enquanto escorava suas costas sobre o apoio da
cama. As pernas finas, branquíssimas, embaladas por um vestido preto. Subindo
pela cintura, um cinto prateado minimalista abraçava a mulher, prendendo seu
abdômen a seda que compunha o vestido. O decote era gracioso. Suas amigas riam,
próximas ao balcão do bar exótico da noite. Júlio escutava algo, mas estava
mais preocupado em tomar seu Bloody Mary. Ele poderia pensar que o tal sangue
que agora escorria de seu lábio seria resquício do drinque, porém a questão não
tem uma resposta tão deus ex maquina assim. E, na verdade, não faria o
menor sentido.
A mulher de decote gracioso era loiríssima,
original. Tomava uísque. Inusitada, puxou papo sobre esportes. Cutucava Júlio,
expert televiewer de ESPN. Virara o resto do seu drinque e comera o pedaço de
vegetal que enfeitava o copo. Interrompeu graciosamente a mulher. Enfatizou que
LeBron James era, de fato, um gênio do basquete atual. A mulher discordava. Os
dois gostaram da situação. Ao lado de Júlio, no balcão, um rapaz, de mesma
idade, imagino eu, concordava com o rapaz. Gritava empolgado, dizendo que acompanhava
os jogos da NBA todos os dias. Parecia desesperado por atenção, o que é bem
óbvio na situação atual. Digamos, em tempos de Facebook, todo mundo quer curtir
alguma coisa (obrigado pela atenção dispensada, leitor).
Mulher e Júlio se calaram, observando a cena do
rapaz empolgado. "Mão-furada, é você?!" grita o rapaz, empolgado,
mais uma vez. Subitamente, Júlio voa com a mão direita em direção ao rosto do
empolgado. Vidros quebraram, atenções voltadas a cena. O empolgado voou em direção
a Júlio. A briga aconteceu e a mulher decote gracioso observava, excitada. No
fim das contas pouco sangue rolou. A mulher foi embora com as meninas, mas não
parava de encarar Júlio, empolgava com a briga. Ele e empolgado estavam caídos
no chão, exaustos por causa de alguém que faz cesta facilmente.
Júlio riu e começou a traçar o plano pra noite
que viria em breve. O sangue do lábio já estava estancado.
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